Informativo
A QUEM INTERESSAM OS ATAQUES À CARTEIRA DE TRABALHO?
Quem disse que os motoristas da Uber e os entregadores do iFood
consideram os direitos trabalhistas inúteis ou descartáveis? Qual pesquisa –
científica, séria, sem vícios – constatou a concordância desses profissionais
com as condições gerais de trabalho a que são submetidos?
Por André Cintra
No começo de 2023, a Uber e o iFood armaram uma
cilada para o governo Lula e a opinião pública. Cientes de que o presidente
pretendia regulamentar o trabalho por aplicativo, as empresas anunciaram uma
pesquisa com motoristas e entregadores sobre “o futuro do (seu) regime de
trabalho”. A encomenda foi feita ao Datafolha, o instituto de pesquisa de maior
credibilidade no País.
Por trás das boas intenções havia o objetivo de
demonstrar que a maioria dos profissionais rejeitava trabalhar com carteira
assinada, sob as regras e os benefícios da CLT (Consolidação das Leis do
Trabalho). Não se tratava de uma imposição dos aplicativos – mas, sim, de um
consenso entre empregadores e empregados.
Com grande alarde, iFood e Uber divulgaram a
suposta preferência pelo “modelo flexível” de trabalho. “A maioria dos
entregadores consultados tem uma percepção favorável ao modelo atual de
trabalho”, informou o iFood. “Segundo a pesquisa, 77% preferem manter esse
modelo – no qual têm autonomia para escolher seus próprios horários e recusar
viagens a qualquer momento – em vez do vínculo tradicional com as normativas
previstas hoje na CLT”.
Entre os motoristas de Uber, o apoio ao modelo
atual era parecido (75%). Apenas 14% dos motoristas e dos entregadores
manifestaram predileção pelo regime celetista. Tudo indicava que essas novas
categorias profissionais, nascidas na década passada, eram majoritariamente
contrárias ao trabalho formal e, em última instância, indiferentes à
precarização.
Não é bem assim. O problema da pesquisa (devidamente
acobertado pelos apps) é que as perguntas induziam o trabalhador a avalizar as
condições atuais do trabalho. Ao expor aos entrevistados as duas opções –
regime flexível ou CLT –, a sondagem manipulava escandalosamente a descrição de
cada modelo.
Como funciona o modelo atual, conforme a
pesquisa? “O motorista /entregador têm autonomia para escolher seus próprios
horários e recusar viagens a qualquer momento, mas sem acesso aos benefícios
trabalhistas previstos na CLT para empregados”.
Eis uma meia verdade e, como dizia Millôr
Fernandes, “o perigo de uma meia verdade é você dizer exatamente a metade que é
mentira”. O motorista/entregador pode, sim, escolher a carga de trabalho e a
viagem – só que não de forma impune. Mais do que plataformas que fazem a mera
mediação entre prestadores e usuários de serviço, essas empresas têm regras.
Conforme reportagem do Intercept Brasil,
entregadores precisam seguir tais regras para ganhar, em média, menos de dois
salários mínimos por mês. “Caso contraiam qualquer tipo de enfermidade
proveniente de seus ambientes de trabalho, o mais óbvio acontece: não recebem
nenhum tipo de auxílio das plataformas. Muito pelo contrário – quanto mais
tempo sem trabalhar, por qualquer que seja o motivo, menos trabalho lhes é
oferecido.” O preço da liberdade – ou, vá lá, autonomia – é o boicote.
Voltemos à pesquisa Datafolha. Qual seria a
alternativa ao modelo vigente? O instituo pergunta se os profissionais preferem
“ter vínculo de emprego para acesso aos benefícios trabalhistas previstos na
CLT, mas as plataformas definem jornada e remuneração e os trabalhadores não
podem recusar demandas em tempo real ou decidir quando dirigir / fazer entregas
sem autorização sob pena de demissão ou sanções”.
A sutileza das empresas é converter a carteira
assinada num fardo. Trabalhadores formais têm direito a descanso semanal
remunerado, 13º salário, férias, FGTS, seguro-desemprego e acesso ao INSS.
Nenhum desses direitos é citado na pergunta, que trata tudo, genericamente,
como “benefícios trabalhistas”.
Em compensação, o risco de motoristas e
entregadores virarem celetistas é descrito com tintas de terror. Ou se mantém
tudo como está hoje, ou – em caso de mudança – a única opção é jornada e
remuneração pré-estabelecidos, fim da autonomia e um ambiente de pressão. Uber
e iFood insinuam que demissões e sanções passariam a ser a regra do jogo, como
se hoje os trabalhadores já não estivessem sujeitos a uma série de restrições.
Perguntas viciadas levam a resultados
imprecisos e, em última instância, a inverdades. É compreensível que essas
empresas tentem “provar” a aceitação do trabalho precarizado. Acredita quem
quiser – ou quem não teve acesso ao conjunto da pesquisa. Para todos os
efeitos, quem tem a prerrogativa de apontar saídas dignas para a uberização não
pode confiar em levantamentos fraudulentos.
Ainda assim, a carteira de trabalho está
novamente em xeque – e não se trata da tradicional ofensiva empresarial contra
qualquer tipo de regulamentação trabalhista. Assustados com os resultados das
eleições municipais de 2024, representantes do campo progressista, como os
partidos de esquerda e o movimento sindical, começam a relativizar o trabalho
formal.
A tese é a de que não sabemos interpretar o
mundo do trabalho atual – este “admirável mundo novo” em que a informalidade
bate recorde e o registro trabalhista perde apelo. Tal incapacidade seria uma
das causas de nossas derrotas eleitorais. Sem diálogo com os trabalhadores,
estaríamos repetindo ações e discursos defasados.
“Tem uma parte da sociedade que não quer ter
carteira profissional assinada. As pessoas querem trabalhar por conta própria,
querem ser empreendedoras”, declarou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) na semana passada, em evento com empresários em São Paulo. De acordo com
Lula, “mudou o mundo do trabalho no Brasil”, mas a esquerda não se deu conta.
Sua fala foi reverberada pelo jornalista
Ricardo Kotscho, em artigo sobre o desempenho do PT nestas eleições. “O partido
enfrenta problemas não só na comunicação, como constatou o próprio presidente
Lula esta semana, mas no seu discurso e no relacionamento com o eleitorado,
diante de um mercado de trabalho que mudou radicalmente desde a sua chegada ao
poder em 2003. Carteira de trabalho, por exemplo, virou lembrança do passado”,
escreveu Kotscho.
Lula, Kotscho e cia. precisam consultar
urgentemente os números da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD) Contínua do IBGE. Os dados se referem ao trimestre encerrado em agosto.
É fato: os 39,826 milhões de trabalhadores informais do País representam um
recorde.
Mas é igualmente verdade que o Brasil nunca
teve tantos trabalhadores formais: são 38,6 milhões de brasileiros com carteira
assinada no setor privado, além de 12,7 milhões de servidores públicos. São,
portanto, mais de 51 milhões de trabalhadores protegidos por uma legislação
supostamente anacrônica.
Diferentemente do que Lula diz, não é que os
jovens trabalhadores recusam o regime celetista. Eles preferem, sim, a
flexibilidade do trabalho informal (e precarizado) a uma jornada de trabalho
mais rígida, com carga horária diária predefinida. Mas não há pesquisa ou
estudo sério que mostre o desprezo desses trabalhadores às vantagens de serem
celetistas.
Quem disse que os motoristas da Uber e os
entregadores do iFood consideram os direitos trabalhistas inúteis ou
descartáveis? Qual pesquisa – científica, séria, sem vícios – constatou a
concordância desses profissionais com as condições gerais de trabalho a que são
submetidos? A quem interessa essa nova onda de ataques à carteira de trabalho?
Do alto de seus 92 anos, a carteira, instituída
pelo governo Getúlio Vargas, continua cercada de mitos. É falso que o documento
tenha nascido junto à CLT, no Rio de Janeiro, no Dia do Trabalhador (1º de Maio)
de 1943. O decreto que a criou a “carteira profissional” é anterior e foi
assinado por Vargas em março de 1932, embora a CLT, efetivamente, tenha
garantido mais direitos ao trabalhador com carteira assinada.
Tampouco é verídico que sua inspiração seja
fascista. Historiadores do trabalho questionam cada vez mais a hipótese de que
a CLT em geral e a carteira de trabalho em particular sejam baseadas na “Carta
del Lavoro”, criada por Benito Mussolini na Itália. À luz da história, está
claro que o registro em carteira é garantia de proteção e cidadania – e não de
tutela do Estado.
O coro por desregulamentação e desmonte já
resultou em retrocessos como a reforma trabalhista, de 2017, e a reforma da
Previdência, em 2019. A esquerda precisa conhecer a fundo a classe trabalhadora
para representá-la à altura e ter mais êxito nas eleições. Nada disso, porém,
se dará à custa da demonização da carteira de trabalho e de um discurso
conservador. Chega de precarização!
Fonte: Portal Vermelho
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