Informativo
NOVA PREVIDÊNCIA: APOSENTADORIA E PERDA DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO
“(…) se o servidor ou empregado público vier a se
aposentar, o simples fato de deter essa condição acarretará a extinção do
vínculo estatutário ou celetista que esteja em vigor na data da aposentadoria.”
Entre as múltiplas perdas impostas aos
trabalhadores regidos pela CLT, servidores públicos, aposentados e
pensionistas, a Emenda à Constituição (EC) 103, de 2019, a “Nova Previdência”
de Bolsonaro e Guedes, trouxe inovações cujo grau de crueldade e perversidade
chegam às raias do inacreditável.
Uma dessas inovações é a previsão, inserida
na redação dada ao § 14 do artigo 37 da Constituição, de que “a aposentadoria
concedida com a utilização de tempo de contribuição decorrente de cargo,
emprego ou função pública, inclusive do (RGPS) Regime Geral de Previdência
Social, acarretará o rompimento do vínculo que gerou o referido tempo de
contribuição.”
Tal redação substituiu a proposta inicial do
Executivo, que previa, na forma de novo § 10 do artigo 37, que seria “vedada a
percepção simultânea de proventos de aposentadoria do Regime Próprio de
Previdência Social de que trata o artigo 40, de proventos de inatividade, de
que tratam os artigos 42 e 142 e de proventos de aposentadoria do Regime Geral
de Previdência Social, de que trata o artigo 201, decorrentes do exercício de
cargo, emprego ou função pública, com a remuneração de cargo, emprego ou função
pública”, ressalvados os cargos acumuláveis na forma prevista na Constituição,
os cargos eletivos e os cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação
e exoneração.
Caso essa proposta viesse a ser aprovada,
estaria vedada a acumulação de salário de servidor efetivo ou empregado
permanente com proventos de aposentadoria decorrente de cargo ou emprego
público da mesma natureza. E mesmo que o servidor/empregado público houvesse se
aposentado pelo RGPS ele não poderia ingressar em novo cargo/emprego e acumular
o benefício com a remuneração, exceto no caso de cargo em comissão.
Ao rejeitar essa proposta, porém, a comissão
especial da Câmara dos Deputados que apreciou a PEC 6, de 2019, deu novo
tratamento à matéria, que acabou por ser acatada pelos plenários das 2 Casas
Legislativas.
HISTÓRICO
A tentativa não é inédita: no governo FHC,
foram alterados pela Lei 9.528, de 1997, os §§ 1º e 2º do artigo 453 da CLT,
que passaram a prever, que, na aposentadoria espontânea de empregados das
empresas públicas e sociedades de economia mista seria permitida sua readmissão
desde que atendidos aos requisitos constantes do artigo 37, inciso XVI, da
Constituição, quanto à acumulação de cargos e empregos, e condicionada à
prestação de concurso; e que o ato de concessão de benefício de aposentadoria a
empregado que não tiver completado 35 anos de serviço, se homem, ou 30, se
mulher, importaria em extinção do vínculo empregatício.
Contudo, em 1998 o STF afastou a vigência
dessas normas, ao deferir liminar nas ADI (ações diretas de
inconstitucionalidades) 1721-3 e 1770-4, e, em 2006, declarou, em definitivo, a
inconstitucionalidade dos parágrafos 1º e 2º do artigo 453 da CLT, por
considerar inexistente a incompatibilidade entre a aposentadoria e a
continuidade do vínculo empregatício, e haver violação aos preceitos
constitucionais relativos à proteção do trabalho e à garantia à percepção dos
benefícios previdenciários.
Em consequência dessa decisão, o TST
(Tribunal Superior do Trabalho), em outubro de 2006, também cancelou a OJ
(Orientação Jurisprudencial) 177 da SDI-1, que assim definia o direito à
indenização no caso de extinção do vínculo decorrente de aposentadoria
voluntária:
“A aposentadoria espontânea extingue o contrato de trabalho, mesmo quando o
empregado continua a trabalhar na empresa após a concessão do benefício
previdenciário. Assim sendo, indevida a multa de 40% do FGTS em relação ao
período anterior à aposentadoria”.
No mesmo sentido, o TST adotou a Orientação
Jurisprudencial 361 da SBDI-1, que assim define:
“Aposentadoria espontânea. Unicidade do contrato de trabalho. Multa de 40%
sobre todo o período. A aposentadoria espontânea não é causa de extinção do
contrato de trabalho se o empregado permanece prestando serviços ao empregador
após a jubilação. Assim, por ocasião de sua dispensa imotivada, o empregado tem
direito à multa de 40% do FGTS sobre a totalidade dos depósitos efetuados no
curso do pacto laboral (DJ de 20.05.2008).”
Contudo, não está em jogo a discussão de ser
ou não estável o empregado público que se aposenta e permanece em atividade,
pois a estabilidade é assegurada apenas ao titular de cargo efetivo. Segundo o
voto do ministro Ayres Brito, na ADI 1.710,
“Nada impede, óbvio, que, uma vez concedida a
aposentadoria voluntária, possa o trabalhador ser demitido. Mas acontece que,
em tal circunstância, deverá o patrão arcar com todos os efeitos legais e
patrimoniais que são próprios da extinção de um contrato de trabalho sem justa
motivação”.
Ao constitucionalizar a matéria, assim, a EC 103 pretende afastar, pelo menos
sob o prisma formal, o vício de inconstitucionalidade já reconhecido pelo STF,
e validar o que, desde 1998, já vem sendo intentado no bojo das “reformas” de
caráter neoliberal, e que retornou com redobrado vigor na PEC 6, de 2019.
SERVIDORES
PÚBLICOS
Como se percebe a partir da localização do
dispositivo da EC 103, de 2019, no capítulo que trata da Administração Pública,
a norma se dirige a servidores públicos civis, sejam eles empregados públicos
ou estatutários.
Na forma incorporada ao texto constitucional,
e em vigor desde 13 de novembro de 2019, com validade para todos os entes
da Federação, ou seja, não depende de qualquer medida posterior para sua
produção de efeitos em âmbito federal, estadual, distrital ou municipal, se
o servidor ou empregado público vier a se aposentar, o simples fato de deter
essa condição acarretará a extinção do vínculo estatutário ou celetista que
esteja em vigor na data da aposentadoria. Para esse fim, bastará que o
órgão ou entidade ao qual o servidor está vinculado tenha ciência do ato de
aposentadoria, no caso de ser ela concedida pelo INSS, para que se opere a
extinção do vínculo estatutário ou celetista.
Uma questão a considerar, é se o segurado do
RGPS, que não seja servidor público, mas empregado em empresa privada, e que se
aposente computando tempo de contribuição como servidor público, estará sujeito
à mesma penalização, ou seja, se a concessão de aposentadoria geraria a
extinção do vínculo empregatício. Nesse caso, contudo, a parte final do
dispositivo explicita uma vinculação entre o tempo de serviço público
empregado, e o rompimento do vínculo que gerou o referido tempo de
contribuição. Assim, a norma não se aplica a quem, tendo sido servidor ou
empregado público, esteja, na data da aposentadoria, exercendo atividade em
empresa privada. Nesse caso, não haverá a extinção compulsória do vínculo
empregatício.
Mas o mesmo não ocorrerá se alguém, que tenha
sido servidor ou empregado público, deixe de sê-lo, e continue a contribuir
para o RGPS como empregado de empresa privada ou contribuinte individual, volte
a ser titular de emprego público e, então, requeira a aposentadoria. Nesse
caso, só fato de estar no exercício do cargo ou emprego público, com a contagem
desse tempo de contribuição, geraria a extinção do vínculo.
Paradoxalmente, porém, se o empregado público
não computar, para fins de aposentadoria que venha a requerer, o tempo de
contribuição do cargo ou emprego que estiver exercendo, mas apenas tempos
anteriores, ainda que de atividade no serviço público ou empresa estatal, em
decorrência de outro vínculo, não haveria a extinção do vínculo ativo, pois o
que diz o dispositivo é que a aposentadoria nessa condição “acarretará o
rompimento do vínculo que gerou o referido tempo de contribuição”.
AFRONTA
AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Tal regra, anômala e contrária ao princípio
da igualdade, e por isso mesmo questionável quanto a sua validade
constitucional, somente afeta empregados públicos, posto que empregados de
empresas privadas não estariam atingidos. Mas ambos, porém, são segurados do
Regime Geral de Previdência Social, por definição, e aos quais deveria ser
aplicado idêntico tratamento, no que tange aos efeitos previdenciários de suas
relações de emprego ou de tempo de contribuição.
Há outro aspecto problemático, que é o
objetivo dessa norma quanto à servidores estatutários que, com fundamento na
Lei 9.717, de 1998, passaram a ser regidos pelo RGPS. Em função da conveniência
administrativa, entes subnacionais, notadamente municípios, extinguiram os
respectivos regimes próprios de Previdência e passaram a vincular seus
servidores titulares de cargo efetivo ao RGPS. Tal aberração jurídica levou a
que, em alguns casos, houvesse o entendimento de que esses servidores
estatutários, caso se aposentassem pelo RGPS, poderiam continuar no exercício
de seus cargos efetivos, dada a separação do regime de cargo efetivo e o regime
previdenciário.
Não ocorre tal situação, porém, no caso de
servidor titular de cargo efetivo, e que seja vinculado ao Regime Próprio de
Previdência, visto que é causa legalmente prevista da vacância do cargo efetivo
a concessão da aposentadoria pelo Regime Próprio. Nesse caso, por exemplo, a
Lei 8.112, de 1990, que rege os servidores públicos federais, já prevê, desde
sempre, que no caso da aposentadoria concedida pelo Regime Próprio da União, o
servidor deixa de exercer o cargo efetivo, e o mesmo pode ser provido por outro
indivíduo, mediante concurso público.
CARGO
EM COMISSÃO
Não é a mesma regra aplicável ao titular de
cargo em comissão: não havendo a situação de efetividade, o servidor efetivo
que se aposenta pode continuar a exercer o cargo em comissão, da mesma forma
que o titular de cargo em comissão, que não seja titular de cargo efetivo, e
que é segurado obrigatório do RGPS, não é afetado pela vacância compulsória em
caso de optar pela aposentadoria.
Com a nova regra, porém, o servidor
comissionado, assim como o estatutário vinculado ao RGPS, que requeiram a
aposentadoria tempo de contribuição nessa condição, passarão a ser
compulsoriamente desligados, da mesma forma que já ocorre quanto ao estatutário
vinculado ao regime próprio.
Em todos os casos, portanto,
caracterizando-se a extinção do vínculo como compulsório e decorrente de
aposentadoria voluntária do empregado ou servidor, estará afastada a condição
para o pagamento de multa indenizatória sobre o saldo da conta vinculada do
FGTS, ou seja, o empregado público que se aposentar não fará jus, por força da
extinção compulsória do vínculo, à multa indenizatória, dado que essa somente é
devida no caso de demissão imotivada. Trata-se do mesmo objetivo buscado pela
redação dada ao artigo 453 da CLT em 1998 e julgada inconstitucional pelo STF.
A regra, contudo, somente se aplica a
aposentadorias concedidas a partir de 13 de novembro de 2019. Esse é o comando
expresso do artigo 6º da EC 103:
“Art. 6º O disposto no § 14 do artigo 37 da
Constituição Federal não se aplica a aposentadorias concedidas pelo Regime
Geral de Previdência Social até a data de entrada em vigor desta Emenda
Constitucional.”
Para esse fim, porém, o que importa não é a
data do ato de concessão, mas a data do início do benefício, ou seja, a data em
que foi requerido validamente, nos termos do artigo 49 da Lei 8.213, de 1991.
Mesmo que a concessão tenha se dado a posteriori, havendo o direito
sido adquirido até 12 de novembro de 2019, ou seja, antes da EC 103 entrar
em vigor, e requerido nessa condição, estará resguardada a preservação do
vínculo, mesmo que a aposentadoria seja concedida a partir de 13 de novembro de
2019.
APENAS
PARA OS FUTUROS
Assim, foi afastada a aplicação geral e
imediata aos empregados públicos e servidores estatutários já aposentados em 13
de novembro de 2019, mas que mantiveram seus vínculos, da regra de extinção do
vínculo. Caso não houvesse sido acolhida tal regra de transição pela comissão
especial na Câmara dos Deputados, empresas estatais como Embrapa, Banco do
Brasil, Caixa e Petrobras seriam fortemente atingidas, com milhares de
empregados públicos em atividade sendo imediatamente desligados de seus
empregos, por já estarem em gozo de aposentadoria. Estimativa apresentada pelo
deputado Domingos Neto (PSD-CE) em emenda apresentada à PEC 6, de 2019,
apontava a existência de mais de 70 mil trabalhadores de empresas estatais que
se aposentaram e que continuavam em atividade.
Mas mesmo esses empregados públicos, que não
serão imediatamente afetados, porém, estarão sujeitos a alteração relevante em
suas relações empregatícias.
Também com caráter anti-isonômico, foi
aprovada a proposta de Guedes e Bolsonaro para submeter os empregados das
empresas públicas, das sociedades de economia mista e das suas subsidiárias à
aposentadoria compulsória aos 75 anos de idade, mesma regra fixada para os
servidores estatutários.
Assim, ao atingir essa idade, o empregado
público, da mesma forma como já ocorre com o servidor estatuário, terá
extinguido o seu vínculo, descaracterizando-se, para fins indenizatórios, a
aposentadoria imotivada.
Aqueles que já se acham aposentados,
poderiam, em tese, ser excluídos dessa regra, mas haveria, aí, duplo absurdo,
pois, além de já estarem aposentados, poderiam permanecer em atividade na
empresa além dos 75 anos de idade, quando seus colegas estariam sujeitos a
dupla penalização: extinção do vínculo, ao se aposentarem, ou aposentadoria
compulsória, aos 75 anos…
Importante registrar que, em sua proposta
original, a PEC 6, de 2019, previa que o vínculo empregatício mantido no
momento da concessão de aposentadoria voluntária não ensejaria o pagamento da
indenização compensatória prevista no inciso I do caput do artigo 7 º
da Constituição, nem o depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
devido a partir da concessão da aposentadoria. Tal proposta, dada a sua grosseira
iniquidade e fragilidade política e jurídica, acabou por ser rejeitada pela
comissão especial da Câmara dos Deputados.
INCONSISTÊNCIA
JURÍDICA
São demonstrações cabais da inconsistência
jurídica e da perversidade da EC 103, de 2019, que, exigida pelo mercado, foi
aprovada de forma açodada e irresponsável pelo Congresso, com afronta ao devido
processo legislativo, às cláusulas pétreas da Carta de 1988 e ao princípio da
proporcionalidade, elevando ao nível constitucional aberrações como as que foram
examinadas ao longo dessa análise.
Como decorrência da vigência e efeitos da EC
103, empresas estatais como o Banco do Brasil já estão exigindo que seus
empregados informem se requereram aposentadoria a partir de 13 de novembro de
2019, com o objetivo de dar cumprimento à nova regra constitucional. Com
efeito, a norma não admite transação ou juízo de conveniência, e é de aplicação
obrigatória. Ocorre que o empregado não pode ser obrigado, senão por força de
lei, a prestar tal informação, e sofrer qualquer penalidade em caso de não
fornecê-la voluntariamente, e caberá às empresas, e ao governo e ao INSS,
regulamentarem a situação, por meio, por exemplo, de comunicação compulsória do
INSS às empresas estatais, quanto a aposentadorias concedidas a seus empregados.
Fonte: Luiz
Alberto dos Santos – Portal Vermelho
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