Informativo
ADVOGADOS EXPLICAM SENTIDO AMPLO DA PERSEGUIÇÃO A LULA
O
lawfare militar, político, comercial e geopolítico
Por Cristiano Zanin
Martins e Valeska Teixeira Z. Martins*
Já
faz algum tempo que as leis e os procedimentos jurídicos têm sido deturpados e
mal utilizados em diversos lugares do mundo para promover verdadeiras
perseguições contra indivíduos ou grupo de pessoas — organizados sob as mais
diversas formas (grupos políticos, grupos empresariais, grupos temáticos e até
mesmo países).
Charles
Dunlap Jr., general aposentado da Força Aérea norte-americana, escreveu um
importante artigo[1] em 2001 no qual usou pela primeira vez o termo lawfare[2]
para designar esse fenômeno sob o enfoque militar. Segundo expôs à época, o
lawfare seria “a estratégia de utilizar ou mal utilizar a lei em substituição
aos meios militares tradicionais para se alcançar um objetivo operacional”[3].
O trabalho apresentava os Estados Unidos como vítima de lawfare[4], situação
que, na forma atual do fenômeno e tal como o compreendemos, permite em algumas
situações conclusão em sentido exatamente oposto.
Há
estudiosos sobre o tema em importantes universidades do mundo, como Harvard e
Oxford. Trabalhos científicos mostram que o lawfare se desenvolve em três
dimensões: a escolha da lei; a escolha da jurisdição e as externalidades. Estas
últimas estão associadas ao papel da comunicação e da mídia na ocorrência do
fenômeno, com vistas à promover verdadeiras operações psicológicas[5].
Busca-se, em suma, mediante estratégias cuidadosamente definidas de
comunicação, criar um ambiente favorável perante a opinião pública para
viabilizar a prática do lawfare.
No
Brasil, o termo lawfare foi utilizado pela primeira vez em coletiva
de imprensa que fizemos em 10 de outubro de 2016 na condição de advogados do
ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva[6]. Na ocasião, a partir
de estudos anteriores e de entrevistas que fizemos com renomados professores
que se dedicam à matéria, como os antropólogos John e Jean Comaroff[7]-[8]-[9],
da Universidade de Harvard, propusemos esse termo para expressar que Lula
estava sendo alvo de uma perseguição política por parte de alguns membros do
Sistema de Justiça a partir da utilização abusiva da lei e dos procedimentos
jurídicos em associação com uma intensa campanha midiática que tinha por
objetivo minar a reputação do ex-presidente e a proteção da garantia
constitucional da presunção de inocência[10]-[11].
O
caso Lula é, indiscutivelmente, um dos mais relevantes paradigmas no mundo de
lawfare com objetivos políticos. Por outro lado, é possível dizer, com sólida
base de apoio, que o lawfare não se limita aos objetivos militares — como foi
afirmado originariamente por Charles Dunlap Jr. — ou, ainda, à perseguição
política. A prática de lawfare com desígnios comerciais e até mesmo geopolíticos
já possui um enorme gama de fatos que permitem constatar o fenômeno também
nessas áreas.
Em
uma face mais simples, é possível identificar o lawfare em iniciativas
jurídicas múltiplas adotadas por uma empresa ou outra forma de associação
contra seus concorrentes ou oponentes. A iniciativa busca inviabilizar tais
concorrentes ou oponentes acionando o aparato regulatório e persecutório do
Estado com acusações frívolas ou desprovidas de suporte probatório mínimo.
Enquanto o concorrente ou o oponente — ou, ainda, seus dirigentes e
colaboradores — são enredados pelas teias do Estado, abre-se a oportunidade de
consolidação ou expansão dos negócios em favor da empresa ou da entidade que
deflagrou as providências jurídicas.
Há,
por outro lado, uma espécie mais complexa de lawfare com finalidade comercial e
geopolítica se desenvolve por meio da utilização de mecanismos transnacionais
de persecução. Como exemplo eloquente, o Foreign Corrupt Act (FCPA), que é uma
lei norte-americana projetada originariamente para punir empresas daquele país
que praticassem corrupção no exterior, atualmente é utilizado para tentar
conferir jurisdição mundial aos Estados Unidos.
Empresas
e empresários de todo o mundo estão sendo punidos e obrigados a pagar elevadas
quantias aos cofres norte-americanos porque acusados, com o auxílio de
autoridades locais, de violação ao FCPA a partir de exóticas
interpretações[12]. Há, também, efeitos colaterais dessas ações dos órgãos
norte-americanos com autoridades locais que acabam por resultar em acordos
comerciais favoráveis a empresas ou a setores daquele país. Exemplos recentes
podem ser mencionados.
Em
2016, empresas brasileiras como a Embraer sofreram atos de persecução do
Departamento de Justiça norte-americano e acabaram por firmar acordos com
aquele órgão estrangeiro, em sintonia com as autoridades locais. Tais acordos
estabeleceram obrigações pecuniárias e de outras naturezas, tais como o
monitoramento interno da companhia. Dois anos depois, foi anunciada uma
operação da Embraer com a Boeing, uma estratégica empresa norte-americana[13].
Difícil crer que apenas uma afinidade comercial tenha orientado esse resultado.
Orde
F. Kittrie, importante estudioso do assunto[14]-[15], cita como exemplo de
lawfare comercial e geopolítico aquilo que ocorreu com a empresa Siemens entre
2006 e 2008. Após se negar a observar o embargo comercial decretado pelos
Estados Unidos ao Irã, a Simens passou a ser alvo de procedimentos
investigatórios em diversos países no mundo, que resultaram no pagamento de quantias
bilionárias a título de multas e indenizações. Independentemente da ocorrência
admitida de práticas indevidas, a motivação para deflagrar as investigações,
segundo o autor, estava ligada à intenção dos Estados Unidos de elevar a
pressão externa contra o Irã — para atender aos interesses geopolíticos daquele
país.
Na
mesma linha, elementos já disponíveis permitem suspeitar que a prisão da
empresária chinesa Meng Wanzhou, uma das principais acionistas da gigante
Huawei, estão ligadas à prática do lawfare. A detenção ocorreu no Canadá a
pedido dos Estados Unidos, em meio a uma intensa disputa comercial entre os
norte-americanos e a China, na qual a Huawei ocupa lugar de destaque. Os
elementos disponíveis também tornam difícil aceitar a tese de que a prisão
nesse momento tão delicado das relações entre tais países foi uma mera
coincidência — e não um capítulo de uma guerra jurídica para fins comerciais e
geopolíticos.
Enfim,
o lawfare é uma prática atualmente realizada com os mais diversos objetivos:
militares, políticos, comerciais e até mesmo geopolíticos. O sucesso no
enfrentamento desse fenômeno está ligado à sua correta identificação e à
utilização de técnicas específicas de combate, que associam o conhecimento
adequado da legislação aplicada, o comportamento que deve ser adotado pelas
vítimas e as associações necessárias entre a resistência jurídica e outras
ferramentas importantes como a investigação e a comunicação.
[1]
DUNLAP JR., Charles. Law and Military Interventions: Preserving Humanitarian
Values in 21st Conflicts. Artigo apresentado na Humanitarian Challenges in
Military Intervention Conference, Washington, DC, 2001.
[2]
O termo decorre da junção das palavras inglesas “law” e “warfare”. Ao pé da
letra significa “guerra jurídica”.
[3]
DUNLAP JR., Charles. Lawfare Today: A Perspective, em Yale Journal of
International Affairs, 2008, p. 146: “Although I’ve tinkered with the
definition over the years, I now define ‘lawfare’ as the strategy of using – or
misusing – law as a substitute for traditional military means to achieve an
operational objective”.
[4]
O foco do trabalho estava voltado a processos e denúncias envolvendo violação
de direitos humanos nas intervenções militares realizadas pelos Estados Unidos,
sobretudo perante órgãos internacionais especializados nesse tema.
[5]
GOMÉZ, Santiago. Lawfare y operações psicológicas. Disponível em http://www.agenciapacourondo.com.ar/patria-grande/lawfare-y-operaciones-psicologicas.
[6]
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/defesa-de-lula-diz-que-lava-jato-usa-leis-como-arma-de-guerra-para-desmoralizar-inimigo/
[7] COMAROFF, John L. e COMAROFF, Jean. Law and Disorder in the Postcolony, em
The University of Chicago Press, 2006, p. 29-30: “In the process, too, it
becomes clear that what imperialism is being indicted for, above all, is its
commission of lawfare: its use of its own rules—of its duly enacted penal
codes, its administrative law, its states of emergency, its charters and
mandates and warrants, its norms of engagement—to impose a sense of order upon
its subordinates by means of violence rendered legible, legal, and legitimate
by its own sovereign word”.
[8]
COMAROFF, John L. e COMAROFF, Jean. Ethnicity, Inc., em The University of
Chicago Press, 2009, p. 56: “Lawfare, the use of legal means for political and
economic ends is endemic to the technology of modern governance. Democratic and
authoritarian states alike have always relied on constitutions and statutes, on
charters, mandates, and warrants, on emergency and exception—on the violence
inherent in the law—to discipline their citizenry”.
[9]
Uma das conversas que tivemos com o Professor John Comaroff está disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=skCRotOT1Lg
[10]
Nesse sentido é o que expusemos em nota à imprensa divulgada em 17/10/2016.
Disponível em: http://www.averdadedelula.com.br/pt/2016/10/17/defesa-identifica-taticas-de-lawfare-em-denuncia-contra-lula/.
[11]
O Professor John Comaroff concedeu entrevista ao jornal Folha de S. Paulo em
18/11/2016 na qual expôs essa situação:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/11/1829175-professor-de-harvard-ve-presuncao-de-culpa-contra-lula-na-lava-jato.shtml
[12] Mike Koehler, em interessante artigo, explica que o FCPA vem sendo
utilizado sem qualquer escrutínio judicial pelo Departamento de Justiça dos
Estados Unidos para impor sanções a empresas dos mais diversos países a partir
de interpretações e teses jurídicas bastante discutíveis. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1705517.
[13]
A nota à imprensa divulgada pela Embraer para anunciar a operação comercial
está disponível em: https://ri.embraer.com.br/list.aspx?IdCanal=PXlq+a4Z+bixVnURyPcmLw==
[14]Disponível
em: https://scholarlycommons.law.case.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.com/&httpsredir=1&article=1162&context=jil
[15] Orde F.
Kitrrie é autor da obra Lawfare: Law as a weapon of war (Oxford, University
Press, 2016).
*Cristiano Zanin Martins
é sócio do Teixeira, Martins e Advogados.
*Valeska Teixeira Z.
Martins é sócia do escritório Teixeira, Martins & Advogados.
Fonte: Conjur
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