Informativo
A MP 1045 E O FIM DA GRATUIDADE
Por
Valete Souto Severo*
O PLC 17 que resulta do texto de conversão da
MP 1045 em projeto de lei não se limita às regras originais dessa medida, que
já são péssimas, pois autorizam redução de salário e suspensão de contrato em
plena pandemia. Retiram, portanto, capacidade de consumo e a possibilidade de
viver de modo saudável, em um contexto no qual a média salarial não passa de R$
750 em algumas regiões do país. O PLC traz também três novas formas de
contratação, sob a mesma lógica do trabalho intermitente: o pagamento é apenas
do período trabalhado e não há garantia de um mínimo de horas por mês. Férias e
gratificação natalina são, na prática, suprimidas, pois a previsão é de
pagamento mensal dessas rubricas, de forma proporcional às horas trabalhadas.
Se não houver trabalho, não há pagamento. E se houver, o pagamento será
inferior àquele previsto na legislação vigente. Hoje, porém, não vou tratar
dessas questões.
Vou tratar da proposta de alteração contida
nesse mesmo projeto de lei para as regras da gratuidade. Há poucos dias, artigo
publicado no Espaço Vital referia-se à situação de uma mulher trabalhadora, a
quem foi negado o direito à gratuidade da Justiça. Desempregada, condenada a
pagar custas, essa cidadã não pôde recorrer da decisão proferida em seu
processo. Algo que tem se repetido nas Varas do Trabalho do país inteiro. Há
alguns meses, um trabalhador que denunciou a prática de racismo – obrigado a
cortar o cabelo que usava em estilo black
power, cumpriu essa imposição por duas vezes; na terceira, negou-se
a fazê-lo, e foi despedido, também foi penalizado. O TRT do Paraná, apesar da
perícia realizada no processo demonstrando que o cabelo do trabalhador não
interferia no uso do capacete, entendeu que a empresa “apenas teve o zelo de
preservar pela segurança do empregado”. Julgou improcedente o pedido e condenou
o trabalhador a pagar custas de R$ 9.904,56 e honorários de R$ 49.522,80 para o
advogado da empresa. Não são casos isolados.
A possibilidade de condenar quem é pobre a
pagar custas e honorários aparece no texto da CLT com a chamada “reforma”
trabalhista, em 2017. É resultado de um movimento explicitado no Documento 319
do Banco Mundial. Lá há expressa orientação para que os “programas de reforma
do Judiciário” revejam suas normas sobre custas e honorários “determinando se
são suficientemente altas ao ponto de deter demandas frívolas e condutas
antiéticas”. A regra alterada no texto celetista é objeto de uma ação junto ao
STF, mas até hoje a ADI 5766 não foi julgada. O que dessa omissão resulta é a
aplicação cotidiana de dispositivos que ferem a literalidade da Constituição da
República, afinal há no artigo 5º o dever fundamental do Estado de prestar
“assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de
recursos”. Uma parte da magistratura trabalhista, cujos membros juraram cumprir
a Constituição, vem aplicando esses dispositivos, trazendo como resultado
concreto a mais eficiente fórmula de vedação do acesso à Justiça.
Isso, porém, não parece ser suficiente no
contexto de desmanche em que estamos vivendo. O PLC 17/2021, que tramita em
regime de urgência no Parlamento brasileiro – já foi aprovado pela Câmara e
enviado ao Senado – altera novamente as disposições legais, para exigir
comprovação de inscrição em programa do governo federal como única prova
possível da condição de pobreza. Além disso, reforça a possibilidade de
condenação ao pagamento de despesas processuais, inclusive com eventuais
créditos que a trabalhadora ou o trabalhador receber naquele ou em outro
processo, mesmo para quem for reconhecidamente pobre. A previsão é de alteração
da CLT, do CPC e das leis dos juizados federal e estaduais, cível e penal. É o
fim da gratuidade em todas as formas de acesso ao Poder Judiciário, com o claro
propósito de impedir quem é pobre ou está sem emprego de obter tutela
jurisdicional.
No âmbito das relações de trabalho isso é
ainda mais grave. A Justiça do Trabalho surge historicamente para garantir
acesso à Justiça. O Decreto que a institui, ainda na década de 1930 do século
passado, refere que o Estado não pode ser neutro “diante das perturbações
sociais”. Deve, ao contrário, assumir a posição de garantidor da efetividade
dos direitos, através de um procedimento simples, ágil e gratuito. A gratuidade
integral, que em 1988 é consagrada como um direito fundamental, está lá na
gênese do processo trabalhista. Destruí-la é bem mais do que promover uma
alteração legislativa lesiva à classe trabalhadora. É instituir um novo
discurso.
Esse novo discurso é avesso aos direitos
sociais em geral, e ao Direito do Trabalho em especial. Pretende a extinção da
Justiça do Trabalho. Isso não é pouco. Afinal, com todos os problemas que
enfrenta, a Justiça do Trabalho é o único lugar de fala da classe trabalhadora.
Não há outro modo de realizar direitos trabalhistas, especialmente em uma
sociedade na qual o desemprego já atinge 20 milhões de pessoas. É apenas
através da Justiça do Trabalho que se obtém, muitas vezes, acesso ao
seguro-desemprego, ao FGTS, às verbas resilitórias, às horas extras. No limite,
a extinção da gratuidade em todos os âmbitos da Justiça tem por finalidade a
extinção do Poder Judiciário tal como o conhecemos. Esse poder, que ao longo do
Século XX afirmou-se como o “guardião das promessas” do Estado Social,
tornou-se intolerável ao capital.
E para quem considera alarmista tal
afirmação, sugiro refletir sobre as demais alterações que vêm sendo propostas e
incluídas no ordenamento jurídico. Dentre elas, destaca-se o incentivo à
conciliação, especialmente àquela extrajudicial, que afasta completamente o Estado
de sua função social, jogando as pessoas a própria sorte. Dificulta-se o
ajuizamento de demandas judiciais e, ao mesmo tempo, valorizam-se “formas
alternativas de resolução dos conflitos”, inclusive com o apoio explícito e o
uso da estrutura do próprio Poder Judiciário para negar sua razão de
existência. Está lá, também, no Documento 319, a afirmação de que “a
morosidade, ineficiência e corrupção têm estimulado os litigantes a evitar
completamente o sistema Judiciário” e a forma proposta para solucionar isso é o
estímulo à “resolução de conflitos extrajudiciais”. O que não está dito, nem
poderia, é que esse é o caminho mais curto para a redução da função do Poder
Judiciário, com a eliminação de instâncias que de algum modo podem tensionar as
ambições do “mercado”. A Justiça do Trabalho, não por acaso, é o primeiro alvo,
mas certamente não será o último, pois um Judiciário “facilitador e regulador
das atividades de desenvolvimento do setor privado”, como refere o mesmo
documento, é uma contradição em termos.
Essa é uma estrada que compromete o projeto
de nação explicitado no texto da Constituição da República. Compromete nossa
soberania, nossa possibilidade de viver bem. E nos atinge a todos, pois a
ausência de acesso à Justiça em uma sociedade organizada como a nossa
representa, concretamente, a ausência de direitos. E a ausência de direitos se
materializa na fome, na violência, na privação, no adoecimento e na morte. O
que agora se promove contra a classe trabalhadora, logo atingirá quem se sente
imune a tais agressões. Quando as garantias de quem julga também forem
ceifadas, será que haverá cumplicidade?
Cada decisão que condena quem está
desempregado ou é pobre a pagar custas e honorários ajuda a destruir a
sociabilidade possível, gestando uma realidade na qual ninguém está a
salvo.
O PLC 17 de 2021, também por isso, precisa
ser rejeitado.
*Valdete
Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no
Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo
do Trabalho da UFRGS e escritora.
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