Informativo
MEDIDA PROVISÓRIA CRIA TRABALHADOR DE ‘SEGUNDA CLASSE’, REDUZ HORA EXTRA E ATRASA APOSENTADORIA
Por Daniel Camargos, na Repórter Brasil*
Uma Medida Provisória (MP) repleta de emendas pode cortar
proteções trabalhistas, reduzir a renda dos trabalhadores, criar categorias de
empregados de “segunda classe” e atrapalhar a fiscalização de escravidão
contemporânea caso sua conversão em lei seja aprovada pelo Congresso em votação
prevista para essa terça-feira (3) à tarde. Enquanto isso, as atenções do país
estão voltadas às polêmicas presidenciais sobre o voto impresso, a volta aos
trabalhos da CPI da Covid e as Olimpíadas.
Os “jabutis” (como são chamadas as emendas estranhas ao tema
principal do projeto, inseridos no relatório final do deputado Christino Áureo
– PP-RJ), transformam a MP 1045 em uma minirreforma trabalhista – prejudicial
aos empregados.
A Repórter Brasil apurou que muitas das propostas foram
costuradas com o relator pelo Poder Executivo, por meio de representantes do
então Ministério da Economia, que hoje migraram para o novo Ministério do
Trabalho e Previdência.
Editada pelo governo federal no final de abril, a medida
autorizou a suspensão de contratos e redução da jornada de trabalho (com
redução salarial) como forma de tentar ajudar as empresas em tempos de pandemia
do novo coronavírus. Já foi prorrogada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem
partido) e precisa ser votada pelos deputados federais para ser convertida em
lei antes de perder a validade, em 9 de setembro. O relatório está pronto para
votação no Congresso e é considerado prioridade pelo Executivo, tanto que
entrou na agenda da primeira sessão após o recesso.
Contudo, os “jabutis” inseridos pelos deputados na MP 1045 são
rechaçados por sindicatos, auditores fiscais do trabalho, magistrados e pelo
Ministério Público do Trabalho, que divulgou na última sexta-feira (30 de
julho) um documento assinado por 17 procuradores, entre eles o procurador-geral
José de Lima Ramos Pereira, destacando a inconstitucionalidade de diversos
pontos do relatório.
“As reduções de direitos previstas, como a possibilidade de
firmar contratos civis e sem garantias trabalhistas e previdenciárias, podem
aumentar muito os riscos de superexploração dos trabalhadores”, afirma o
procurador do trabalho e vice-coordenador nacional da área de combate à
escravidão do MPT, Italvar Medina, que é um dos signatários do documento.
“Há uma busca pela precarização do vínculo [trabalhista]. Vários
países tentaram esse caminho e em nenhum lugar significou aumento do emprego e
da remuneração das pessoas”, afirma o auditor fiscal do trabalho, Luiz Scienza,
presidente do Instituto Trabalho Digno, entidade que reúne auditores dedicados
ao estudo e pesquisa do trabalho decente.
CUT (Central Única dos Trabalhadores), CTB (Central dos
Trabalhadores do Brasil), Força Sindical e outras nove centrais sindicais
também repudiam as modificações trazidas no relatório. Os representantes
sindicais se reuniram com o relator, mas não conseguiram sensibilizar o
deputado, que faz parte da base de Jair Bolsonaro.
Procurado, o relator da MP, deputado Christino Áureo, não quis
conceder entrevista.
Na justificativa do relatório, ele escreveu que: “a urgência e
relevância justificam-se pela necessidade de reação do Poder Público diante da
nova onda de contaminações que impediu a retomada completa das atividades
econômicas, cenário em que o Novo Programa Emergencial é essencial para a
sobrevivência das empresas e dos empregos, assim como para a manutenção da
renda dos empregados”.
Confira as principais mudanças que podem prejudicar os
trabalhadores:
Trabalhador de ‘segunda classe’ sem contrato e sem direitos
As centrais sindicais denunciam que a criação do Regime Especial
de Trabalho Incentivado (Requip), defendida pelo governo, estabelece uma
espécie de trabalhador de “segunda classe”, sem contrato de trabalho e,
portanto, sem direitos (como férias, FGTS, contribuição previdenciária, entre
outros). O Requip é destinado para quem não tem vínculo com a Previdência
Social há mais de dois anos, trabalhadores de baixa renda que foram
beneficiados com programas federais de transferência de renda e jovens com
idade entre 18 e 29 anos.
A síntese do Requip é a prestação de serviços ou trabalho
eventual associado à formação profissional, com assinatura de um termo de
compromisso, mas sem caracterizar relação de trabalho. Os pagamentos ao
profissional são chamados de Bônus de Inclusão Produtiva (BIP) e de Bolsa de
Incentivo à Qualificação (BIQ).
“Esta modalidade de trabalho, Requip, ficará completamente à
margem da legislação trabalhista, já que não haverá vínculo empregatício; não
haverá salário, mas apenas o pagamento de ‘bônus de inclusão produtiva’ (pago
com recursos públicos) e de ‘bolsa de incentivo à qualificação’; não haverá
recolhimento previdenciário ou fiscal; não haverá férias, já que trabalhador
terá direito apenas a um recesso de 30 dias, parcialmente remunerado; o
vale-transporte também será garantido apenas parcialmente”, informa nota da
Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do
Adolescente do MPT.
“Embora o objetivo ‘social’ do programa seja relevante, trata-se
de um programa que promove a exploração da mão de obra, subvertendo o direito
ao trabalho assegurado como direito social pela Constituição”, afirma análise
do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).
Em abril, quando a MP 1045 foi discutida, o Ministério Público
do Trabalho condenou a proposta: “Trata-se assim de uma modalidade de trabalho
altamente precarizada, que criará uma espécie de ‘trabalhador de segunda
classe’”. Em nota, o MPT destacou que não há nenhum mecanismo na MP para evitar
que empregados atuais, contratados pelas regras vigentes, sejam substituídos
pelos trabalhadores admitidos via Requip.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e
Assalariadas Rurais (Contar) manifestou preocupação com o Requip, pois entende
que pode ser um caminho para “legalizar a informalidade” do trabalhador do
campo.
REDUÇÃO
DO PAGAMENTO DE HORAS EXTRAS
Caso a MP seja aprovada pelo Congresso, bancários, jornalistas e
operadores de telemarketing, entre outros trabalhadores com jornadas reduzidas
(ou seja, de menos de 8h por dia) terão redução no valor do pagamento de horas
extras.
O texto do relator prevê uma “extensão da jornada” para 8 horas
diárias e determina que o pagamento da hora extra tenha acréscimo somente de
20% — hoje, a legislação trabalhista determina que a hora extra tenha acréscimo
de 50% (quando trabalhada de segunda a sábado) e 100% (quando trabalhada domingos
ou feriados).
“É um absurdo que não deveria acontecer”, afirma a presidente da
Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf), Juvandia
Moreira. “Já derrotamos esse assunto em outras tentativas, mas, infelizmente,
sempre retorna”, critica. Além de reduzir o pagamento da hora extra, a MP
permite que a alteração seja feita por acordo individual, sem a mediação do
sindicato que representa a categoria.
“A previsão de acordo individual em uma situação dessas vai
contra todos os princípios que norteiam o direito do trabalho”, afirma o juiz
Valter Pugliese, diretor da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do
Trabalho (Anamatra). Para ele, o empregado não tem como negar o acordo se tiver
que negociar diretamente com o patrão, pois a diferença de forças é muito
grande. “A negociação do sindicato nessas situações é essencial”, afirma.
Reforma trabalhista foi aprovada pelo Congresso sob o comando do
governo Temer, em 2017 (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)
O MPT destaca que as jornadas especiais de trabalho para certas
categorias de trabalhadores não são por capricho. “Mas em razão das condições
especiais inerentes ao exercício de suas atribuições, com sobrecarga física e
mental diferenciadas em relação aos demais”.
“Não se muda uma legislação consolidada sem debate público e com
a categoria”, afirma a presidente da Federação Nacional dos Jornalistas
(Fenaj), Maria José Braga.
Esse jabuti foi apresentado pelo deputado Eli Corrêa Filho
(DEM-SP) e acatado na íntegra pelo relator, Christino Áureo (PP-RJ). A emenda
prevê que a medida poderá ser aplicada também depois do fim da pandemia.
“Instrumento de flexibilização e modernização da legislação laboral, com vantagens
múltiplas e abrangentes dos vários segmentos interessados”, escreveu o deputado
no texto da emenda.
FGTS MENOR
PARA QUEM FOR DEMITIDO
Outro ponto criticado pelas centrais sindicais é usar a MP para
instituir o Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego (Pirore),
ressuscitando pontos da MP 905, que previa a carteira de trabalho Verde e
Amarela.
Segundo o texto do relator, o programa é voltado para jovens
adultos de 18 a 29 anos que procuram o primeiro emprego com carteira assinada e
pessoas com mais de 55 anos sem vínculo formal de emprego por mais de um ano.
Ambos os grupos, principalmente o primeiro, são afetados por taxas de
desemprego acima da média da sociedade.
O salário-base mensal tem o teto de dois salários mínimos e,
nessa modalidade de contratação, os empregados terão direitos como 13° salário
e férias pagas parceladamente. Além disso, a indenização sobre o saldo do FGTS
em caso de demissão também poderá ser paga parcelada e antecipadamente. O valor
da multa nesse caso deixa de ser de 40% do total do FGTS e cai para 20%.
Outra perda para o trabalhador é a redução da alíquota do FGTS
depositada pelas empresas, que cai de 8% para 2% para as microempresas, 4% para
empresas de pequeno porte e 6% para as demais empresas. Pela regra vigente, um
trabalhador que recebe salário de R$ 2,2 mil tem o depósito mensal de R$ 176 no
seu FGTS. Se ele for funcionário de uma microempresa receberá o depósito de R$
44.
“Priore é um novo nome para a Carteira Verde Amarela. São
questões que precisam ser examinadas para evitar categorias de trabalhadores
com menos direitos”, afirma o juiz Valter Pugliese, diretor de assuntos
legislativos da Anamatra.
FISCALIZAÇÃO
TRABALHISTA SEM MULTA E COM ‘ORIENTAÇÃO’ PARA ESCRAVAGISTAS
Um dos “jabutis” apontados pelo MPT altera a fiscalização
trabalhista e prevê que antes de um empregador ser multado por infringir a lei,
devem ser realizadas duas visitas dos auditores-fiscais do trabalho, mesmo para
situações graves de violações, como infrações às normas de saúde e segurança
(que impõe aos trabalhadores riscos de doenças e acidentes).
“Chega-se ao cúmulo de impor a dupla visita até mesmo para
ilícitos verificados em casos de trabalho análogo ao de escravo”, critica o
MPT.
A proposta faz uma ressalva para “irregularidades diretamente
relacionadas à configuração da situação” de escravidão. Contudo, os
procuradores que assinam a nota afirmam que isso é inconstitucional por que não
há nenhuma irregularidade trabalhista relacionada à vítima que não esteja
diretamente relacionada à escravidão e que não seja fruto de crime por parte do
empregador.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos
podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado (que envolve
cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado
a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega
a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva
(levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração,
também colocando em risco sua saúde e vida). Empregadores devem usar a MP para
questionar os dois últimos elementos.
Os procuradores também apontam que a proposta quer reduzir o
caráter de fiscalização e tornar a atividade dos auditores fiscais como uma
ação apenas orientativa. “O que pode resultar em estímulo à prática de
ilicitudes e incremento de acidentes, mortes e adoecimentos nas relações
laborais”, entendem os 17 procuradores que assinam a nota técnica.
“Quanto ao combate ao trabalho escravo e infantil, em
particular, traria enormes prejuízos. Primeiramente porque retiraria poderes
investigatórios de diversos órgãos, como próprio Ministério Público e a Polícia
Federal”, afirma o procurador Medina, do MPT.
“Com isso, muitos empregadores vão esperar que um auditor fiscal
do trabalho faça uma visita, oriente e, enquanto isso, não cumprem a lei”,
afirma Luiz Scienza, presidente do Instituto Trabalho Digno.
JULGAMENTO
DAS INFRAÇÕES POR COMISSÃO COM INTEGRANTES EMPRESARIAIS
O relatório se vale de outro “jabuti” que sugere alterar o
artigo 635 da CLT para que os recursos dos empregadores contra autos de
infração passem a ser julgados por uma comissão que pode ter, inclusive,
integrantes das empresas infratoras.
Para o MPT, isso submete a análise a critérios políticos de
conveniência: “Com risco de fragilização da política pública de erradicação do
trabalho escravo, pois também se submeteriam a esse procedimento autos de
infração que consubstanciam resgates de trabalhadores”.
Na prática, caso a MP 1045 seja aprovada, representantes do
governo e das empresas vão decidir se os nomes de determinadas empresas farão
parte da “lista suja”, o cadastro de empregadores responsabilizados por mão de
obra análoga à de escravo, por exemplo. Luiz Scienza, do Instituto Trabalho
Digno, explica que essa comissão, se criada, tende a favorecer aqueles que
detém o poder econômico e político no Brasil.
Isso porque a “lista suja”, por exemplo, é um incentivo às
empresas a cumprirem a legislação, pois expõe o nome dos flagrados com
escravizados para a sociedade, incluindo os compradores no mercado nacional e
internacional e bancos financiadores.
É a segunda vez que se tenta criar uma comissão do tipo. A
primeira foi no final do governo Michel Temer, em outubro de 2018.
“Há uma busca pela precarização do vínculo [trabalhista]. Vários
países tentaram esse caminho e em nenhum lugar significou aumento do emprego e
da remuneração das pessoas”, afirma o auditor-fiscal do trabalho, Luiz Scienza
(Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil)
APOSENTADORIA
PODE DEMORAR MAIS TEMPO
Outro ponto destacado pelas centrais sindicais como prejudicial
é que o trabalhador que tiver o contrato suspenso deverá contribuir como
segurado facultativo (autônomo) para o INSS (Instituto Nacional de Seguridade
Social), seguindo as alíquotas estabelecidas para o segurado obrigatório
(aqueles que têm carteira assinada). Ou seja, tira a obrigação do patrão de
fazer a contribuição.
O advogado trabalhista Antonio Megale, da LBS Advogados, destaca
que sem o pagamento da contribuição previdenciária, o período de suspensão do
contrato não contará como tempo de contribuição para conseguir a aposentadoria
— ou seja, o trabalhador terá de esperar mais tempo para ter direito ao
benefício.
“Isso causará prejuízos ao trabalhador quando for requerer sua
aposentadoria”, afirma. “É o empregador que deve pagar a contribuição
previdenciária, e não só o trabalhador, em momento de pandemia e dificuldades
financeiras, com redução salarial”, entendem as centrais sindicais.
DIFICULDADE
DE ACESSO À JUSTIÇA GRATUITA
Rechaçadas pelas centrais sindicais, as alterações de artigos da
legislação trabalhista atual que recuperam dispositivos de outras medidas provisórias
que já caducaram, como a MP 925 e a MP 927, também estão presentes na proposta.
Uma delas altera a gratuidade da Justiça trabalhista.
O advogado Megale explica que o relatório da MP passa a exigir
que seja feita a comprovação da renda para fins de acesso à justiça gratuita,
sendo que atualmente, basta a declaração de insuficiência de recursos.
“O trabalhador fica com medo de entrar na justiça mesmo tendo
convicção de que teve seu direito violado”, entende Clóvis Roberto Scherer, do
Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos).
INCONSTITUCIONALIDADE
DOS ‘JABUTIS’
As centrais sindicais destacam que a inserção de “jabutis” ao
texto original de uma Medida Provisória já foi considerada inconstitucional
pelo Supremo Tribunal Federal, em 2015.
A tese é corroborada pelo MPT, que aponta jurisprudência e
recomenda que todos os “jabutis” sejam “apreciados em propostas legislativas
específicas, que permitiriam amplo debate nas Casas do Congresso Nacional”.
A situação lembra a “boiada”, termo usado pelo então ministro do
Meio Ambiente, Ricardo Salles, em reunião ministerial de 22 de abril de 2020,
quando sugeriu aproveitar que as atenções da mídia estavam voltadas à pandemia
de covid-19 para aprovar uma série de mudanças nas regras do setor.
*Colaborou Leonardo Sakamoto
Esta
reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto
PN: 2017 2606 6/DGB 0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da
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