Informativo
A VELHA EXPLORAÇÃO DO TRABALHADOR NAS NOVAS RELAÇÕES DE TRABALHO
Por
Carolina Maria Ruy*
O discurso que hoje condena a CLT como um
entrave à oferta de trabalho, este sim é velho.
O abandono legal e social que marca o
trabalho dos entregadores por aplicativos lembra a situação os operários do
início do século XX. Como exemplo mais bem acabado da precarização do trabalho,
resultante de uma política econômica antissocial e, sobretudo, da reforma
trabalhista de 2017, a figura do entregador reflete as ideias das classes
dominantes sobre os direitos trabalhistas.
Ideias que foram expostas com muita clareza,
e sem pudor, pelo gerente financeiro da empresa iFood, Diego Barreto, no artigo
“Novas relações de trabalho”, publicado no jornal Valor Econômico, no dia 24 de
julho.
Barreto defende que o emprego com registro em
carteira é uma forma velha e desgastada de contrato. Segundo ele os “velhos”
modelos de negócio e do vínculo empregatício criam uma percepção de segurança,
mas, por outro lado exclui “cerca de metade da população que trabalha”. Ele diz
ainda que “A nova economia inclui todos, independentemente de sexo, cor, idade,
classe social ou experiência prévia”.
Sobre a relação do Ifood com os entregadores,
o gerente lança mão de uma argumentação contraditória para justificar a
precarização. Em suas palavras “Equilibrar os benefícios para todos os
participantes das novas relações de trabalho nascidas no contexto da velha
economia, por exemplo, requer dos formuladores de políticas públicas que se
libertem da limitação ‘trabalhador sinônimo de empregado celetista’”.
Nesta mesma linha da incompatibilidade entre
o tipo de trabalho que defende e o Estado no qual ele opera, Barreto reivindica
uma “uma rede de segurança social capaz de abranger o conjunto dos brasileiros
que atuam por conta própria – e não apenas os que trabalham com aplicativos”.
Ele diz ainda que “quem precisa ganhar o pão
de cada dia não pode esperar” e exalta o MEI como uma forma de “acesso dos
trabalhadores independentes à proteção social” o que, segundo ele, “comprova
que é possível proteger todo trabalhador independente”.
IDEIAS
CONFUSAS E CONTRADITÓRIAS
As ideias que o empresário defende sobre os
direitos trabalhistas são confusas e cheias de contradições.
Em primeiro lugar não é verdade que a CLT
exclui a população das proteções que ela oferece empurrando o trabalhador para
a informalidade. Isso é um efeito em cadeia que começa com o empregador que se
nega a respeitar tais direitos. Os direitos previstos na CLT existem para
formar uma classe trabalhadora forte, com poder de compra, para formar um
mercado consumidor, que alimenta as empresas e também o Estado através do
pagamento de impostos.
Quando Barreto afirma que a “nova economia
inclui todos”, ele não deixa claro em que condições se dá esta inclusão. Ele
fala em “sexo, cor, idade, classe social ou experiência prévia”, como um
abrangente perfil do trabalhador. Mas é importante notar que a lei não pode ser
tão genérica e deve sim distinguir perfis de trabalhadores e tipos de trabalho.
Alegar que se trata de uma nova economia que inclui todos pode parecer uma
frase bonita, mas ela remonta à exploração do início da revolução industrial
que dispunha, sem distinção, do trabalho de menores, idosos, gestantes etc.
Ainda sobre este ponto, é também importante que em alguns casos a experiencia
prévia seja exigida sim. Não como forma de elitizar o mercado, mas como forma
de assegurar a saúde e a segurança do trabalhador no exercício de sua
profissão.
Em seu artigo, Barreto defende um tipo de
trabalho nos moldes do mais radical liberalismo, e que condena a proteção
trabalhista oferecida pela CLT. Mas, contraditoriamente, afirma que cabe aos
“formuladores de políticas públicas” regular as desproporções presentes no
trabalho dos entregadores e nos rendimentos dos executivos dos
aplicativos.
Ora, o Estado deve sim fazer isso! Talvez ele
não tenha se dado conta (ou finge que não entendeu) que esta “rede de proteção
social” é justamente a razão de ser da CLT e que, por outro lado, a realidade
do Brasil hoje, onde se estabelece o Ifood, bem como dos demais serviços do
tipo, é, desde 2017, a do desmonte desta rede de segurança social. E é
exatamente por causa desse desmonte que tantos jovens se dispõe a esse tipo de
trabalho precário.
VELHAS
NOVAS IDEIAS
Travestidas de novas e modernas, as ideias de
Diego Barreto retrocedem ao início da industrialização no Brasil, quando as
leis trabalhistas eram tênues, difusas e não fiscalizadas, quando não havia
sindicatos e as empresas impunham suas regras de exploração ao trabalhador.
É uma grande mentira, repetida por liberais
decadentes com a esperança de que possam mudar o passado e impor essa
“verdade”, que a proteção ao trabalhador prevista na CLT inibe a geração de
empregos. Sob a CLT o país cresceu e se urbanizou. Grandes industrias e um
pujante setor de serviços se formou no Brasil guiados pela bússola da
CLT.
Por outro lado, após a aprovação da
famigerada reforma trabalhista, sob o argumento de que baratear o emprego
geraria o ambiente competitivo capaz de aquecer a economia e que isso
beneficiaria o trabalhador, o que se verificou foi o aumento do desemprego, uma
explosão de trabalhos regados à superexploração e precarização, além de um
assombroso rebaixamento da proteção social, configurados sobretudo no aumento
da pobreza.
A CLT tem 77 anos. O trabalho escravo no
Brasil durou 330 anos. São apenas 77 anos em que o trabalhador tem acesso a um
mínimo de proteção social contra mais de 3 séculos em que o trabalhador não
apenas não tinha nenhum direito, como era uma propriedade do patrão. Importante
notar que a abolição da escravidão e o advento do trabalho assalariado não foi
resultado de um processo revolucionário, de revolta e insurgência popular.
Embora essas revoltas tenham existido e tenham pressionado para o fim daquele
regime desumano, a transição foi feita por cima, elaborada e executada pela
elite, que naquele caso era a monarquia, interessada em se adequar às demandas
do capitalismo.
Com isso, mesmo que a escravidão tenha sido
extinta em 1888, a mentalidade escravocrata permaneceu nas relações entre
patrões e trabalhadores e se perpetuou anos a fio como um pilar destas
relações. Não é exagero dizer que convivemos com vestígios dela ainda hoje.
A conquista da CLT, neste contexto histórico,
representou uma ruptura radical com a mentalidade escravista. E sua
implementação forçou a sociedade a desenvolver uma nova visão não apenas das
relações de trabalho, mas também sobre o trabalhador, que passa a ser visto
como cidadão.
Isso mostra que a CLT não é velha. Ao
contrário disso, ela é resultado da organização de trabalhadores em torno da
defesa de direitos e dignidade e marca um processo de modernização do país. Um
processo que rompeu com as oligarquias rurais, de mentalidade escravocrata e
imperial e que inseriu o trabalhador na sociedade.
O discurso que hoje condena a CLT como um
entrave à oferta de trabalho, este sim é velho. Ele remonta à um Brasil
colonial, à passagem do trabalho escravo ao trabalho assalariado, onde os
senhores, ainda impregnados da visão escravista, consideravam que os novos
assalariados não tinham direito nenhum.
Desde meados da segunda década do século 21,
entretanto, os avanços civilizatórios conquistados pelos brasileiros sofrem
graves ameaças configuradas em um renascimento da extrema direita. Ao contrário
dos eventos que culminaram com a CLT, o retrocesso social que vivemos hoje
baseia-se na retirada de direitos e na desvalorização do trabalho.
Se por um lado a CLT baseou a formação de uma
classe média consumidora de produtos e serviços, por outro, seu desmonte
congregado principalmente na reforma trabalhista e refletido no trabalho dos
entregadores por aplicativos, faz o caminho inverso, retirando a população da
classe média e a jogando-a na pobreza e no abandono.
Jogando-a em uma situação em que a
sobrevivência, imperativa, baseia-se na lógica exposta por Barreto “quem
precisa ganhar o pão de cada dia não pode esperar”.
*Carolina
Maria Ruy é Jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical | Portal
Vermelho
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