Informativo
COMO A DESINDUSTRIALIZAÇÃO COLAPSOU A SAÚDE
É falsa
a dicotomia entre saúde pública e economia. Não adotar o isolamento social para
proteger a economia, em meio uma crise na saúde mundial, só levaria ao pânico,
caos social e uma profunda crise econômica. A estimativa do Imperial College
sobre o número de mortes por 100 mil habitantes seria equivalente a mais de 20
vezes a dos homicídios no Brasil.
O
isolamento social, contudo, produz claros efeitos negativos sobre a produção e,
principalmente, sobre os níveis de emprego e renda das famílias, afetando a paz
social. Para funcionar, felizmente, emergiu um consenso em torno da urgência de
se colocar em prática esquemas maciços de transferência de renda aos mais
vulneráveis durante a duração da pandemia.
O
Ministério da Economia brasileiro estima que a liberação parcial do
seguro-desemprego, para trabalhadores em regime de lay-off, custará mais R$
51,2 bilhões, enquanto os gastos com o auxílio emergencial para informais será
de R$ 98,2 bilhões, totalizando R$ 149 bilhões de reais – ou 2% do PIB, a serem
transferidos para a sociedade pelos próximos três meses.
Mesmo
reconhecendo a timidez da ajuda aos informais, inferior à renda média de R$
1.400, e às perdas que os trabalhadores formais absorverão com o esquema
proposto de lay-offs, parece plausível que uma pergunta passe perante o
imaginário popular: de onde viriam esses bilhões de reais? A resposta é curta:
expansão monetária! “Mas e a inflação?”, perguntaria o mesmo público.
Em
uma economia deprimida, com apenas 76% de utilização da capacidade instalada da
indústria, e uma taxa de desemprego alarmante de mais de 12 milhões de pessoas
(fora os quase 5 milhões de desalentados e 40 milhões na informalidade), antes
mesmo da eclosão da crise da Covid-19, seria inconcebível que uma expansão
monetária dessa magnitude provocasse inflação. Com a eclosão da Covid-19 e das
expectativas de elevada queda do produto e do emprego, as ações expansionistas
se tornaram urgentes para impedir uma derrocada econômica cuja gravidade
ameaçaria o mínimo de coesão social.
Contudo,
não se pode esquecer, o isolamento social é, em si, o reconhecimento de que a
oferta de bens e serviços de Saúde necessários para enfrentar a covid-19 são
limitados. Por essa razão, é necessário “achatar a curva” de infecções.
Evoca-se a imagem de uma economia de guerra, dada a urgência e prioridade de
certas demandas [¹].
É
certo, no entanto, que se deve e pode fazer mais do que achatar a curva. Diante
do aumento geral da ociosidade produtiva e do sepultamento, ao menos
temporário, do mito das finanças robustas, caberia implementar uma estratégia
para organizar a estrutura produtiva com finalidade de atenuar as restrições de
oferta e atender às demandas que surgirão. Exemplos existem vários. Uma delas é
a associação da WEG, uma multinacional brasileira, com a fabricante brasileira
de respiradores Letsung, para aumentar a produção nacional de respiradores em
50 por dia [²].
Há
outras possibilidades como essa, onde a engenharia é de conhecimento da
estrutura produtiva brasileira, ou a engenharia reversa não é de todo
complicado, que podem ser exploradas através das compras governamentais
financiados pela expansão monetária [³]. Felizmente, isso já está sendo feito.
O Ministério da Economia criou forças-tarefa para articular cadeias industriais
e parece ter sucesso com a produção de ventiladores, álcool gel e EPIs. A
iniciativa de reorganização emergencial de estruturas industriais, que se valeu
do mapeamento e dos resultados das políticas industriais deixadas de lado desde
2016, é bem-vinda, mas vem com atraso e modéstia.
A
aposta redobrada na globalização produtiva e na adesão incondicional à política
externa americana, marcas dos governos posteriores à Dilma Rousseff, se revela,
neste particular, um desastre completo. O Brasil, tal como a Alemanha e outros
países, foram alvos de “pirataria moderna”, termo cunhado pelo ministro do
Interior de Berlim, Andreas Geisel. A compra de máscaras, respiradores e testes
foi frustrada por esquemas de mercado em situação de estresse! Os Estados
Unidos fizeram de tudo em nome de seus interesses, desde pagar mais pelos
equipamentos e insumos para passar à frente de outros clientes até interromper
o fluxo de cargas, em nome da segurança nacional norte-americana. O “mercado”,
finalmente, se mostrou em sua essência: economia e política.
Portanto,
fica claro que as estruturas produtivas não deveriam obedecer apenas a uma
lógica de especialização produtiva. Alguns setores, como é o caso da Saúde, têm
sua face de mercado, mas sua estrutura precisa obedecer aos imperativos de
saúde coletiva e, em última instância, como se vê agora, de segurança nacional.
A escassez de máscaras, equipamentos básicos e medicamentos, que estamos
experimentando com grande apreensão, demonstra que as políticas públicas devem
se voltar tanto para o acesso do povo aos bens e serviços de Saúde como também
para suas condições de oferta.
Irresistível
reconhecer que a enorme dificuldade de produzir, no Brasil, EPIs e equipamentos
escancaram um problema que vem se agravando nas três últimas décadas e que hoje
está em seu auge: o esgarçamento do tecido industrial brasileiro. A
participação da indústria na formação do PIB chega a sua mínima histórica desde
o processo de industrialização brasileiro, aos 11,3%. Houvesse um setor
industrial (como um todo, não apenas o de saúde) fortalecido, seria menos
penoso para a estrutura produtiva brasileira se adaptar e produzir mais
respiradores, por exemplo.
Mais
do que nunca, é preciso arranjar o setor produtivo brasileiro para produzir
aquilo que é capaz. Isso não significa, claro, que poderemos produzir tudo. Mas
a produção de qualquer material demandado pelo sistema de saúde ataca em duas
frentes: a primeira é que o sistema logístico não depende de atores
internacionais; a segunda é que qualquer gasto que desafogue a balança comercial
libera dólares para importarmos o que definitivamente não produzimos – como os
reagentes dos testes RT-PCR. Nesse caso, é imprescindível que essa crise deixe
algo de legado.
Acreditando
que vamos sobreviver, algumas lições precisam ser aprendidas. Uma, é que não há
por que deixar que a política econômica seja guiada pela preocupação com a
solidez das contas públicas como uma restrição intransponível e determinística.
Estados soberanos têm mais graus de liberdade para gastar, como a quase
unanimidade dos economistas, nessa crise da Covid, afirma.
O
que nos leva à outra lição que nos é, hoje, duramente ministrada: há setores
produtivos, como o de saúde, mas não apenas, cuja estrutura não deve ser
conformada segundo a lógica da especialização produtiva. Se ainda alimentamos o
sonho de nos tornarmos um país desenvolvido, é inescapável elaborar,
democraticamente, uma estratégia nacional para a indústria, em que setores e
atividades-chave sejam objeto de políticas de desenvolvimento produtivo. Dado
que é nesse setor que temos a maior produtividade (é o que influencia a
produtividade de toda a economia), o ambiente mais favorável para produção de
novas tecnologias, os melhores empregos e diversas outras idiossincrasias
inerentes a atividade industrial (e que merecem um melhor escrutínio, pois está
intimamente ligada ao processo de desenvolvimento).
No
caso da Saúde, devemos desenhar uma política industrial que leve à criação de
empresas no setor de saúde (com a óbvia imposição de obrigações de
investimentos maciços em P&D), sem, contudo, repetir os erros antigos como,
por exemplo, a criação de rent seekers (ou
buscar como um fim e um meio a substituição de importação). Políticas
industriais que desenvolvam novas tecnologias ou que as busquem por meio da
engenharia reversa de patentes expiradas poderão ser postas em prática mais
facilmente através de, por exemplo, de joint
ventures.
Cabe
reconhecer que, se a parceria com o setor privado for desejada, é preciso
garantir a demanda estável dos bens e serviços por um período compatível com a
maturidade dos investimentos. Essa é a condição para que haja a constituição de
empresas e a realização de investimentos. O que nos obriga a concluir que a
fixação de Paulo Guedes no corte de gastos e na flexibilização das despesas
obrigatórias é, não apenas um golpe na prestação de bens e serviços de saúde
para o povo brasileiro – mas, também, um obstáculo expressivo para o
fortalecimento da indústria da Saúde nacional.
O
Brasil precisa ter no seu horizonte estratégico um ideal de Saúde que se
aproxime daquele definido pela OMS – ou seja, “um estado de completo bem-estar
físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”.
Para tanto, além do esforço necessário para conduzir a economia ao pleno
emprego e desconcentrar a renda, há que exigir que o Estado desenvolva uma
visão produtiva estratégica, de longo prazo, investindo constantemente em
produção científico-tecnológico e no desenvolvimento industrial.
NOTAS
[¹]
https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-esta-sem-medicos-e-equipamentos-suficientes-para-encarar-coronavirus-diz-relatorio,70003260291
[²]
https://exame.abril.com.br/negocios/gm-embraer-senai-fabricas-sao-adaptadas-na-luta-para-fazer-respiradores/
[³]
https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,governo-busca-opcoes-para-ampliar-leitos-e-respiradores-no-sus-e-fugir-do-cenario-italiano,70003238174
Fonte: Portal Vermelho
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