Informativo
O QUE FAZER NUM PAÍS QUE ELIMINA EMPREGOS FORMAIS E DIREITOS BÁSICOS?
A retomada da iniciativa do projeto
neoliberal no Brasil, que se dá de forma autoritária, a partir do afastamento
ilegal da presidenta Dilma e da condenação também ilegal do presidente Lula,
impôs uma nova agenda para as relações entre o capital e o trabalho. Esta nova
agenda neoliberal interrompe um período de maior e melhor distribuição da renda
nacional.
Por
Antônio Vicente Martins e Miguel Rossetto*
Em um ambiente de crescimento econômico com
políticas de valorização do salário mínimo, da ampliação dos empregos
formalizados e com o fortalecimento dos sindicatos e das negociações coletivas,
os trabalhadores se apropriaram de uma parcela maior da renda nacional gerada.
A agenda de Temer/Bolsonaro tem como
prioridade reorganizar, a favor do capital, o padrão de ganho – da mais-valia –
extraída da relação entre os trabalhadores e as empresas. Para ampliar as
margens de lucro do capital, é necessário reduzir o “custo do trabalho”. O
símbolo desta iniciativa é a Reforma Trabalhista de Temer, a Lei nº 13467, de
novembro de 2017.
Esta lei, aprovada em tempo recorde no
Congresso Nacional, sem uma discussão ampla com a sociedade, concentra um
conjunto de iniciativas agressivas contra os direitos trabalhistas existentes,
altera ou revoga mais de cem artigos da CLT, estimulando contratos de trabalho
precários, intermitentes, terceirizados. Promove também um duríssimo ataque aos
sindicatos através do estrangulamento financeiro destas entidades, afasta os
trabalhadores demitidos dos sindicatos quando elimina a obrigatoriedade da
homologação da rescisão do contrato de trabalho no sindicato, estimulando ainda
mais a fraude trabalhista como prática empresarial.
Ao mesmo tempo, a denominada Reforma pretende
impor uma enorme restrição aos trabalhadores de acessarem a Justiça do
Trabalho, na medida em que restringe o acesso a justiça gratuita no processo
trabalhista e cria a figura de sucumbência para os trabalhadores em caso de
julgamento da improcedência de seus pedidos. Quem arrisca?
Os efeitos deletérios destas mudanças, já são
demonstrados por vários estudos que demonstram a violação de direitos básicos
dos trabalhadores e a inexistência de aumento de empregos na economia.
Em janeiro de 2019, o governo Bolsonaro
assume. Entre suas primeiras iniciativas, verdadeiro pilar ideológico, está o
fim do Ministério do Trabalho. O Ministério do Trabalho foi criado em 1930, por
Getúlio Vargas, e se manteve de forma ininterrupta por 89 anos. O fim do
Ministério do Trabalho sinaliza de forma cristalina uma política de
subordinação institucional da agenda do trabalho ao ultraliberal Ministério da
Economia. A designação como secretário executivo da nova pasta do articulador
político da reforma trabalhista do governo Temer era revelador do que viria
pela frente.
OS
EFEITOS DA REFORMA DA PREVIDÊNCIA
Na medida em que amplia o tempo de trabalho e
a idade para a aposentadoria e reduz enormemente a salário do aposentado, a
reforma da Previdência certamente vai “segurar” no mercado de trabalho parcela
importante dos trabalhadores, que nas condições atuais sairiam deste mercado
como aposentados. Como consequência, ampliará ainda mais a oferta de mão de
obra em um mercado que hoje não consegue assegurar trabalho e emprego,
permitindo maior redução nos níveis dos salários. E surgem mais iniciativas do
governo sempre na mesma direção precarizante do trabalho e seus atores.
Entre as iniciativas do governo, o fim da
política de valorização do salário mínimo, a apresentação da MP 881, convertida
na chamada Lei da Liberdade Econômica e a MP 905, de novembro de 2019,
anunciada cinicamente como um programa de emprego “verde e amarelo”, são em
realidade textos de destruição de direitos trabalhistas, de limitação na
fiscalização do trabalho e restrições as atividades do MPT. A MP 905 promove de
imediato a alteração em 59 artigos da CLT e revoga 37 dispositivos celetistas.
Ao mesmo tempo, o governa abre uma agenda de
revisão das normas de saúde e segurança no trabalho, com declarado objetivo de
“redução” dos custos empresariais. Neste mesmo período é apresentado projeto
por parlamentares vinculados ao governo, de extinção da Justiça do Trabalho.
Tudo aponta para uma ideologia de eliminação de direitos básicos, retomando
relações de trabalho que poderiam ser vividas na primeira metade do século
passado.
No entanto, a virulência destruidora deste governo
não se detém. Em setembro de 2019, Bolsonaro, através do Ministério da
Economia, institui o Gaet (Grupo de Altos Estudos do Trabalho) com a tarefa de
“avaliar o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da modernização das
relações trabalhistas e matérias correlatas”. A agenda das propostas, divididas
em quatro temas, revela a ambição governista: economia e trabalho; direito do
trabalho e segurança jurídica; trabalho e previdência e liberdade sindical.
Este grupo deve apresentar suas propostas até
a abertura dos trabalhos legislativos, no inicio de 2020. Fica evidente a
intenção de dar continuidade a esta profunda reorganização nas relações de
trabalho no Brasil, através de uma ampla agenda, que envolve a destruição do
sistema de relações de trabalho existente, constituído por instituições, leis,
normas que, mesmo insuficientes, ao longo do tempo se constituíram em um
patrimônio politico da classe trabalhadora brasileira.
Não sem razão é objeto de eliminação pelo
capital, que busca com estes movimentos ampliar seus ganhos, seu poder politico
e desorganizar a classe trabalhadora. Bolsonaro é um agente deste programa.
Este processo não terminou. A agenda e os prazos anunciados para o Gaet e a
própria MP 905 são reveladores desta intenção. Parece-nos evidente que o
movimento sindical, os partidos de esquerda, os defensores do civilizatório
direito do trabalho, devem buscar, de forma decidida, uma sólida unidade de
ação para enfrentar em conjunto esta agenda.
É no “mundo do trabalho” que se decide a
maior ou menor concentração de renda de uma sociedade e é, portanto em torno da
regulamentação deste mercado que se trava uma intensa disputa politica, onde o
papel que o Estado assume é de importância decisiva. E este “mundo do trabalho”
no Brasil é o resultado da construção de uma nação marcado pela violência da
sua classe dominante contra a população indígena, negra escravizada e imigrante
empobrecida. Um enorme e estrutural excedente de mão de obra disponível
produziu a condição política favorável a uma exploração brutal deste trabalho
por parte das elites econômicas.
Alto desemprego e informalidade, condições
precárias de trabalho e sem cobertura legal, alta rotatividade, baixos
salários, exclusão, são as marcas deste mundo do trabalho no País. Diante deste
quadro, não nos parece suficiente concentrar a energia do movimento sindical na
discussão da agenda de “organização sindical a partir do fim da unicidade”. Por
óbvio, esta é uma agenda decisiva, mas é fundamental localizar este debate na
disputa do conjunto das questões vinculadas às relações de trabalho no Brasil e
organizar uma estratégia de combate a partir das definições necessárias para um
novo sistema democrático e justo para as relações.
É preciso que se responda às necessidades do
conjunto da classe trabalhadora. Nossa experiência demonstra que o Estado é
capaz e deve impor regras e disciplinar o capital nativo e equilibrar
minimamente as relações entre o trabalho e o capital. O problema, desde o ponto
de vista dos trabalhadores, portanto, não é a presença do Estado, mas, sim,
como ele se apresenta.
Uma estratégia correta não deve prescindir de
disputar este Estado, as regras e normas que ele é capaz de assegurar, aliás, a
exemplo do que o capital faz. Seria uma ingenuidade, como diz Braudel, imaginar
que o capitalismo é só um “sistema econômico”, é também um sistema político:
“Não devemos nos enganar, o Estado e o Capital são parceiros inseparáveis,
ontem e hoje”.
Esta estratégia vai necessariamente combinar
resistência para se opor à destruição de conquistas trabalhistas acumuladas em
décadas de luta política, com a apresentação de iniciativas de organização
sindical e novos marcos regulatórios que respondam as novas e diversas formas
de organização do trabalho que o capital impõe, a partir das novas tecnologias
disponíveis e das liberdades encontradas para estes movimentos.
Uma agenda desta natureza deverá ser debatida
amplamente com os trabalhadores e o conjunto da sociedade e se constituir em um
instrumento de politização e organização, capaz de permitir uma retomada de
iniciativa popular na disputa politica nacional. As relações de trabalho
pertencem ao universo que garante a dignidade humana e o papel do Estado é
fundamental nesta regulação.
*Antônio
Vicente Martins, advogado trabalhista, foi presidente da Agetra (Associação
Gaúcha de Advogados Trabalhistas, gestão 2013-2015). Miguel Rossetto,
sociólogo, foi ministro do Desenvolvimento Agrário e também do Trabalho
Texto
publicado originalmente na CartaCapital
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