Informativo
NEM NA DITADURA HOUVE TANTOS ATAQUES À CIÊNCIA
Em entrevista ao jornal Folha
de S. Paulo, Danilo Santos de Miranda, diretor-geral do Sesc São Paulo,
diz que no governo Bolsonaro há uma grave incompreensão do papel da cultura
para o desenvolvimento do país. Dos 76 anos de vida completados em abril, ele
passou 51 trabalhando no Sesc São Paulo, 35 deles como diretor-geral, informa a
apresentação da entrevista.
Ao longo desse meio século, conta que diferentes governos já
quiseram interferir na administração do Sistema S, que envolve ainda
instituições como Senai, Senac e Sebrae. Na gestão de Jair Bolsonaro (PSL), no
entanto, afirma que esse discurso é “mais agressivo” e que nunca viu algo
parecido, nem durante a ditadura militar.
Financiadas por taxas compulsórias cobradas na folha de
pagamento das empresas, as instituições do Sistema S tiveram em 2018 um
orçamento de R$ 17,1 bilhões, no qual Paulo Guedes, ministro da Economia,
afirmou que pretende “meter a faca”. O argumento é o de que há irregularidades,
desvios e pouca transparência na gestão desses recursos.
O jornal diz que na unidade de 34 mil m² de Guarulhos,
inaugurada na semana passada, o diretor falou à Folha sobre as acusações do
ministro e defendeu que, se houver mudança na forma de financiamento, as
instituições S tendem a acabar.
Como avalia esses 35 anos à frente do Sesc SP?
Do ponto de vista material, foram mais de 20 unidades novas
espalhadas pelo estado, desde a Pompeia, em 1987, até a de Guarulhos, agora.
Mas o que mais me deixa contente é o conceito da proposta da instituição, que
se consolidou. Uma maneira de trabalhar centrada na educação complementar, que
diz respeito à cultura, ao lazer, a atividades físicas.
Temos com tanta clareza os objetivos educativos da
instituição, que me causa muito espanto o fato de o Sesc e das outras
instituições do Sistema S serem colocadas na berlinda como se fossem
supérfluas, sem vínculo com a necessidade da população.
E por que o sr. acha que estão sendo colocadas na berlinda?
Porque dispõem de muitos recursos provenientes da arrecadação
compulsória, e isso desperta interesses. Se levarmos em conta cargos, posições,
capacidade de amealhar recursos e poder de realizar ações, tudo isso desperta
em muita gente o desejo de ter participação na administração.
Além disso, como há um vínculo com o poder público —e é para
haver mesmo—, com facilidade se entende que o poder público teria que ter uma
presença maior.
Nós temos um DNA claro sobre o que fazer, para quem fazer,
quem paga e como deve ser governado. Outro elemento do DNA é o controle do
poder público. Uma parte das pessoas do poder público nega todos os elementos
anteriores do DNA e considera apenas o último, o controle do Estado, como se o
Sistema S fosse parte do Estado. E uma das essências é que essas instituições
não são parte do Estado.
A Constituição e a Justiça já estabeleceram isso, mas não é
aceito porque desperta interesse. E como essas instituições têm problemas —e
certamente os têm, porque a estrutura é muito grande—, colocam essas questões
como paradigmas de todos, como se todos agissem de maneira irregular, quando
isso é uma exceção da exceção. Que tem que ser resolvida, é óbvio, mas não ser
tratada dessa forma inadequada.
Como a Constituição e a Justiça deixam clara a forma como o Sistema S deve
operar?
A Constituição, no artigo 240, diz que a folha de pagamento
não pode ser usada para pagamentos de tributos, impostos etc., exceto para as
instituições criadas no âmbito da legislação que gerou o Sistema S, mantidas
pelas empresas, administradas pelas entidades sindicais patronais e destinada
aos trabalhadores.
Existe decisão do Supremo Tribunal Federal, de 2014, que
estabelece que essas instituições são garantidas pela Constituição e que a
contribuição não pode ser alterada.
Casos de irregularidades que o sr. chamou de exceção não apontam para uma
necessidade de haver mais transparência no Sistema S?
No site do Sesc damos conta em grande parte de tudo o que
fazemos. E há várias instâncias de controle, desde a auditoria interna em cada
regional até o conselho fiscal nacional que tem sete membros, do quais 4 são do
governo, 1 dos trabalhadores e 2 do empresariado. Também temos o controle da
CGU [Controladoria Geral da União] e do Tribunal de Contas.
São poucas as instituições com tanto controle, mas mesmo
assim há casos pontuais de normas que não são cumpridas. Os mecanismos para
resolver isso são variados.
No caso do Sesc, há intervenções nacionais nas administrações
regionais.
O sr. já havia ouvido alguém dizer que pretende “meter a faca” nos
recursos, como afirmou Paulo Guedes?
Não falando desse jeito tão agressivo, mas já tentaram fazer
isso outras vezes. Primeiro em razão da falta de entendimento do que fazemos.
Muitas vezes se imagina que todos os S são destinados à formação profissional.
É um entendimento reduzido. É verdade que existem atividades destinadas a isso,
provenientes da necessidade brasileira de educação e de educação profissional.
Mas uma outra parte é destinada a um programa amplo de
bem-estar social, de qualidade de vida, de valorização do trabalhador, não no trabalho
apenas, mas na vida.
Desde que estou no Sesc, há 51 anos, vi momentos em que parte
do poder público pretende de alguma forma ter uma ingerência nessas entidades.
Já aconteceu outras vezes de acharem que tudo deve ser destinado à formação
profissional, achando que todo programa voltado para lazer, atividade física e
cultura é supérfluo. É recorrente essa visão de que, se não tiver economia
forte para dar emprego e produzir riqueza, o país não tem saída, que a saída é
só por essa porta. É um entendimento equivocado.
A escola de Chicago [linha de pensamento liberal] diz que não
tem almoço grátis. Insisto em dizer que, se não houver educação e cultura, não
vai ter nem almoço.
É uma visão parcial essa de que emprego é tudo. É essencial,
mas para isso precisa ter educação, gente com condição de ser empregada. Em
muitos casos há emprego, mas não tem gente preparada para ocupá-lo. Por isso vi
as entidades sendo questionadas e o desejo de enquadrá-las numa perspectiva
economicista precária. Independentemente dos partidos, direita e esquerda.
Esse governo tem demonstrado que não endossa a ideia de que a cultura pode
ser uma ferramenta para a educação.
Sim, e essa é uma visão equivocada. A gente tem que entender
que, quando falamos de cultura, existe um mal-entendido geral, se pensa que é
apenas aquilo que os artistas fazem.
O artista passa a ser uma pessoa que, por ter posições às
vezes contrárias ao que está sendo proposto, tem que ser banida, tudo o que faz
tem que ser esquecido, largado e não tem que ter apoio. A cultura é muito mais
do que isso. Diz respeito a todo o universo em que estamos inseridos, à língua
que falamos, ao nosso pensamento.
Por isso, parece esquisita essa ideia de o governo não querer
desenvolver cursos de filosofia e sociologia. É a cultura no sentido da criação
humana que procuramos desenvolver em nossos projetos. Dela fazem parte a
atividade física, a alimentação e a arte, que trabalha com a sublimação, o
abstrato, a capacidade de imaginar, sonhar, crescer e se desenvolver. Melhora a
capacidade de entender a si mesmo, o outro e o mundo.
Lutar contra o mundo das artes achando que isso vai ser bom
para o país pode ser muito perigoso, um tiro no pé.
Essa dificuldade de entender o papel da cultura é mais grave nesse governo
do que em outros?
Sem dúvida. A maneira como veem o aparato cultural
brasileiro, as universidades, o pensamento, a forma como lidam com os
intelectuais, como tratam tudo isso como se fosse descartável, isso me
preocupa.
Nunca vi nada parecido, mesmo no período da ditadura militar,
em que houve censura, questões gravíssimas, violência etc. Mas nunca uma ação
deliberada contra o pensamento, contra a expressão artística. Já houve muitos
problemas, claro, mas agora parece que está indo na essência, um pouco mais
profundo.
E a sociologia e a filosofia, nas quais o governo disse que investirá
menos, são a sua formação...
Felizmente sou muito bem-sucedido com a minha formação. Fiz
filosofia e ciências sociais e as considero indispensáveis para entender a
realidade em um sentido mais profundo.
Espero que os profissionais ligados a essas áreas tenham a
oportunidade de expressar o seu pensamento, de colaborar com a sociedade na
reflexão. A filosofia, a sociologia, a antropologia, achar que tudo isso é
contra o interesse da sociedade está errado. É a favor.
Somos o único animal que pensa, então temos que pensar. Há
posições variadas do ponto de vista ideológico, mas não é razão para dizer que
isso tem que ser abandonado. Isso é muito perigoso.
Há
uma crítica recorrente à produção cultural no Brasil de que é muito dependente
de recursos do Estado e que deveria recorrer mais a patrocínio privado.
Funcionaria para o Sistema S? Seria uma saída para um corte de verba?
Acho difícil, porque essas entidades foram desenhadas de
forma clara e têm tido um resultado prático muito positivo e reconhecido no
Brasil e no exterior. É um DNA feito com vários elementos, qualquer um deles
que vier a faltar compromete o resultado.
Há tudo definido: objetivo, clientela, como é paga a conta,
governança de caráter privado com supervisão de caráter público. Mexer nisso
significa tirar a essência.
Se dissessem que temos que buscar recursos na sociedade com
patrocínio ou com a clientela, isso significa mexer na governança e na clientela.
E essas instituições, algumas criadas há mais de 70 anos, têm um caráter
inovador na responsabilidade social das empresas.
Hoje, cada empresa faz a sua colaboração social com sua
instituição diferente. O Sistema S é uma maneira socializada de fazer isso, é
um projeto social que não é feito em nome de uma empresa isolada, mas de todas.
Se acabar a contribuição compulsória, acaba a instituição. Se entregar para o
governo, incorpora no mecanismo público, e a instituição como ela é acaba.
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