Informativo
O QUE ESTÁ POR TRÁS DA INSISTÊNCIA EM FLEXIBILIZAR O ACESSO ÀS ARMAS?
Por
Pedro Serrano
A obsessão de Bolsonaro por armas de fogo é
assunto conhecido. Embora tenha uma pandemia para controlar e uma economia em
frangalhos para reerguer, o ex-capitão voltou à carga para flexibilizar ainda
mais a venda e o uso de armamentos no País.
Numa canetada, editou os decretos 10.627,
10.628, 10.629 e 10.630 para, dentre outras providências, facilitar a aquisição
de um maior número de armas de fogo e munições, excluir do controle do Estado
determinados produtos, quanto aos colecionadores, atiradores e caçadores,
dispensar a autorização do Exército para aquisição de até 60 armas e, ainda,
admitir a mera emissão de laudo por psicólogo com registro no Conselho Regional
de Psicologia, sem necessidade de credenciamento pela Polícia Federal.
Esses decretos somam-se aos, aproximadamente,
30 atos normativos infralegais editados nos últimos dois anos com o objetivo de
flexibilizar a propriedade e o porte de armas de fogo e munições e reduzir os
controles estatais sobre essas aquisições.
Antes de mais nada, é preciso apontar para o
transbordamento de competências pelo presidente da República, na medida em que
o direito brasileiro não admite o chamado “regulamento autônomo”, independente
de lei.
A pretexto de dar fiel execução ao “Estatuto
do Desarmamento”, Bolsonaro feriu o princípio da legalidade ao editar normas
que não são estritamente subordinadas à lei. Por essa razão, os decretos podem,
de acordo com o artigo 49, inciso V, da Constituição, ser barrados pelo
Congresso ou pelo Supremo Tribunal Federal, como, aliás, aconteceu com outras
investidas nessa área. O exemplo mais recente, antes desses últimos decretos,
foi a isenção de tarifa para a compra de armas do exterior, que acabou suspensa
pelo ministro Edson Fachin, do STF.
Outra questão que deve ser levantada é quanto
ao desacerto de uma política pública que, ao apelar ao sentimento de
insegurança da sociedade, estimula meios privados de segurança e,
consequentemente, fomenta mais violência. Além de se tratar de uma estratégia
que desvia o olhar para a escassez de providências fortalecedoras da segurança
pública brasileira, as medidas, como demonstram inúmeros estudos sobre
violência, ignoram a relação entre disponibilidade de armas de fogo, tráfico de
armas e drogas e violência, bem como da prática de crimes violentos.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Direitos Humanos, no levantamento intitulado “Impacto da aquisição, posse e uso
de armas de fogo por civis nos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e
culturais”, constatou que o acesso civil, inclusive o lícito, às armas de fogo
aumenta a violência e a insegurança e, consequentemente, implica impacto
negativo para os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.
Desde que Bolsonaro foi eleito, o número de armas em circulação legalmente
quase dobrou. No ano passado, o número de registros concedidos pela Polícia
Federal explodiu: aumento de 205% no total de emissões em comparação a 2019.
A ampliação no número de registros, como era
de se esperar, levou ao aumento na violência letal. Levantamento do Monitor da
Violência, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Núcleo
de Estudos da Violência da USP, captou alta de 7% nos homicídios nos cinco
primeiros meses do ano.
Vale observar que o aumento das mortes em
2020 ocorreu após queda histórica em 2019, ano em que houve o menor número
registrado desde 2007, quando o fórum começou a coletar os dados.
Especialistas em segurança pública estimam
que, a cada 1% a mais de armas entre a população, temos um aumento de 2% nos
homicídios. Portanto, está claro que não é possível diminuir a violência por
esse caminho. Ao contrário.
Não se pode ignorar que a disponibilidade de
armas tende a fortalecer organizações criminosas e milícias, que, valendo-se
das inúmeras carências das camadas mais vulneráveis da população, procuram
substituir o Estado.
Sob essa perspectiva, o estímulo às
iniciativas individuais e isoladas de preservação da vida e do patrimônio, bem
como de “justiça” – ou melhor, “vingança” – privada parece ocorrer num cenário
de intencional fragilização das políticas de segurança pública e esfacelamento
da nossa própria democracia, o que pode ser um fértil caminho para tensões
sociais. Trata-se de uma reiterada e incansável incursão que se destina a
infiltrar-se nos mais elementares valores da nossa democracia.
A democracia constitucional visa assegurar o
pleno exercício dos direitos sociais e individuais, bem como a liberdade, a
segurança, a vida, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça. Por
essa simples razão, devem ser rechaçadas as pretensões que, em prejuízo do
próprio pacto de civilidade, estimulem o armamentismo e os meios privados de
segurança.
Fonte:
CartaCapital
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