Informativo
MP 927 APROFUNDA OBRA DE DESTRUIÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO INICIADA EM 2017 COM “REFORMA” TRABALHISTA.
Todos os seus dispositivos são nocivos a quem trabalha e
a quem emprega. Não há previsão de renda mínima, garantia de emprego ou
mecanismos de proteção à saúde. Leia o artigo de Valdete Souto Severo.
“O capital tem um único impulso vital, o impulso de se
autovalorizar, de criar mais-valor, de absorver, com sua parte constante, que
são os meios de produção, a maior quantidade possível de mais-trabalho. O
capital é trabalho morto, que, como um vampiro, vive apenas da sucção de
trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga”
MARX, Karl. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 307-8.
Por Valdete
Souto Severo*
Já escrevi antes que o parlamento brasileiro
tem participado ativamente de uma política que aposta na miséria e na morte das
pessoas que dependem do trabalho para sobreviver. Basta analisar a pauta.
Enquanto projetos que tratam de renda mínima ou de taxação de grandes fortunas
não recebem atenção, as MPs do atual governo ganham preferência absoluta.
A MP 936, que permite acordo individual para
redução de salário em plena pandemia, não apenas foi votada com urgência pela
Câmara, como no Senado ainda ganhou vários enxertos. Aqueles oriundos do texto
da já extinta MP 905 acabaram caindo durante a votação, o que não retira o
caráter nocivo e absolutamente contrário à Constituição da República, das
regras aprovadas.
Reduzir salário durante uma crise sanitária
implica reduzir consumo e comprometer as possibilidades de sobrevivência da
classe trabalhadora pois, segundo o PNAD contínuo de 2020, metade das pessoas
que vivem do trabalho no Brasil tem rendimento mensal de R$ 850,00. Reduzir
essa renda já precária é condenar trabalhadoras e trabalhadores a contraírem
dívidas, escolherem produtos menos saudáveis no supermercado, atrasarem conta
de água ou luz. Uma medida, portanto, que não favorece a sociedade brasileira,
seja da perspectiva humana, seja da perspectiva social ou exclusivamente
econômica.
Por mais incrível que pareça, o parlamento
não parou por aí. Enquanto o projeto de conversão da MP 936 era votado no
Senado, aquele de conversão da MP 927 era submetido à votação na Câmara de
Deputados. Foi aprovado por 332 votos.
Essa MP consegue ser tão ruim ou pior do que
a MP 936. Todos os seus dispositivos são nocivos a quem trabalha e a quem
emprega. Não há previsão de renda mínima, garantia de emprego ou mecanismos de
proteção à saúde.
O que há é autorização para não pagamento do
FGTS e suspensão da fiscalização do trabalho. A MP começa dizendo que a
pandemia “para fins trabalhistas, constitui hipótese de força maior”, buscando
justificar a exceção que, a partir daí, disciplina.
Alguns dispositivos são especialmente ruins.
O artigo 2o prevê que o acordo escrito
prevalece sobre normas coletivas e leis. Com isso, subverte toda a espinha
dorsal do direito do trabalho. Fere tanto o caput, quanto o inciso XXVI
(reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho), do artigo 7o
da Constituição. Fere também o artigo 9o da CLT.
Por que isso, de algum modo, seria benéfico
durante uma pandemia, na qual o número de trabalhadora(e)s desempregada(o)s tem
aumentado exponencialmente? O que mais falta disciplinar que é preciso retirar
através de acordo individual? Já não há garantia contra a despedida. O salário
mínimo é irrisório e, como vimos, sequer vem sendo respeitado. A jornada
máxima, de acordo com a Constituição, já implica a entrega de um terço do dia
para o empregador, e a inconstitucional Lei 13.467 já legitimou acordo
individual para trabalhar 12h sem intervalo. Qual a necessidade de, ainda, em
meio à crise sanitária, colocar a(o) trabalhador(a) à mercê da vontade do
empregador, legitimando falsos acordos individuais nocivos?
Impressiona como o argumento da prevalência
da vontade coletiva, que animou os autores da “reforma” trabalhista, foi
facilmente abandonado, em favor da vontade de um setor muito específico do
capital, cuja verdadeira vantagem a ser auferida com mais esse desmanche
repousa na destruição da economia nacional. E tem como objetivo a transformação
do Brasil em um parque de diversões para multinacionais e especuladores
financeiros.
O artigo 9o refere a possibilidade de
antecipação das férias durante a pandemia, sem o respectivo pagamento. Fere a
literalidade do artigo 7o, XVII da Constituição (gozo de férias anuais
remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal). Férias
não é igual à interrupção da prestação de serviços. É possibilidade de
desconexão, com uma remuneração maior. Portanto, ao permitir o adiantamento das
férias durante a pandemia, o dispositivo já fere a regra constitucional. Quando
menciona que o pagamento pode ser posterior, fere não apenas a regra
constitucional, mas também a CLT, tanto em relação ao art. 129 (Todo empregado
terá direito anualmente ao gozo de um período de férias, sem prejuízo da
remuneração), quanto ao artigo art. 145 (O pagamento da remuneração das férias
e, se for o caso, o do abono referido no art. 143 serão efetuados até dois dias
antes do início do respectivo período). Interromper a prestação de serviços
durante uma pandemia e estimular as pessoas a permanecerem em suas casas,
inclusive com o aumento de gastos ordinários que daí decorre, com toda a
insegurança em relação ao futuro próximo e com todo o sofrimento que a
separação dos corpos nos impõe, jamais pode ser uma circunstância equiparada às
férias.
Utilizar um período de isolamento obrigatório
para suprimir o direito constitucional ao descanso anual remunerado não traz
benefício direto aos empregadores, mas causa um mal significativo a quem vive
do trabalho. Muitos estudos já demonstram que a pandemia, por tudo que
representa e que concretamente causa na vida das pessoas, provoca um sentimento
de luto coletivo, de insegurança e de instabilidade emocional. Esses
sentimentos são potencializados pelo desamparo promovido por regras como essa
do artigo 9o da MP 927. Seu efeito nocivo é incomparavelmente maior do que
eventual economia que o não pagamento antecipado do acréscimo de ? sobre a
remuneração possa significar na contabilidade dos empregadores.
O artigo 14 autoriza compensação de horas
“negativa”. Ou seja, tem a perversidade de dispor que a(o) empregada(o),
obrigada(o) a permanecer em casa durante a pandemia e, no mais das vezes,
trabalhando de modo remoto, ficará “devendo” horas para o empregador. Terá,
portanto, que trabalhar gratuitamente para “pagar” pelo período de isolamento,
quando a pandemia acabar.
Essa regra contraria a literalidade do artigo
7o, XIII (duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e
quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da
jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho). Contraria também o
artigo 59, § 2o da CLT (Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por
força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia
for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não
exceda, no período máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho
previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de dez horas diárias).
O regime de compensação é, pois, um regime de
compensação de jornada por folga. O que a MP autoriza é que os trabalhadores
fiquem “devendo” horas em razão da pandemia, o que além de ilegal e
inconstitucional, é um absurdo perverso, pois atribui à classe trabalhadora uma
“dívida” a que ela não deu causa, já que o isolamento físico não é uma escolha
de quem trabalha.
O artigo 25 permite aos estabelecimentos de
saúde, por acordo individual, prorrogar a jornada das(os) trabalhadoras(es)
para além de 12h por dia e “adotar escalas de horas suplementares entre a
décima terceira e a vigésima quarta hora do intervalo interjornada”, sem
pagamento, com “compensação” em até 18 meses.
A extensão da jornada para profissionais da
saúde implica maior exposição à COVID-19 e, portanto, mais adoecimento. Provoca
mais recurso a benefícios previdenciários e, portanto, mais gastos para o
governo. Faz com que menos pessoas consigam atuar para cuidar da saúde em um
tempo de pandemia, o que resultará em mais mortes.
O Brasil já é o segundo país do mundo com
mais casos de adoecimento e morte por COVID-19, mesmo com toda a subnotificação
que existe. O Sindicato dos Médicos de São Paulo (SIMESP) e o Conselho Federal
de Enfermagem (COFEN) divulgaram que também somos o país com maior número de
mortes de médicas(os) (139), de enfermeiras(os) (190) e demais profissionais da
saúde, por COVID-19¹. Pelos números oficiais, são mais de 83.000 profissionais
da saúde contaminados. Não se trata de decorrência necessária da pandemia, mas
do resultado dessa escolha política que expõe as e os profissionais da saúde a
risco excessivo de contaminação, seja pela extensão da jornada, pela ausência
de intervalo ou pela falta de equipamentos de proteção eficientes.
O artigo 25 da MP 927 contraria a literalidade
do artigo 7o, XIII, já mencionado, e o artigo 59, § 2o da CLT, no qual está
fixado o limite máximo de dez horas diárias. Contraria até mesmo o artigo 59A
da CLT, que já é inconstitucional, revelando o nível de perversão e de
hostilidade à noção de Estado Social, por parte do atual governo e da maioria
das deputadas e deputados do nosso parlamento.
Aliás, é de anotar que no texto da MP 927,
enquanto tramitava na Câmara de Deputados, houve a inclusão de um dispositivo
para reduzir os intervalos de quem trabalha em frigoríficos, outra categoria
que vem sendo gravemente afetada pela gestão genocida em relação à pandemia.
Esse dispositivo foi retirado do texto, mas o fato de que tenha sido proposto e
discutido é revelador da política de exposição à morte, que parece não ter
limite sequer no sentimento básico de humanidade que nos convoca a agir para
preservar a saúde de quem conosco divide a aventura humana na terra.
O artigo 28, parágrafo único, refere que os
empregadores podem considerar suspensos os acordos trabalhistas durante o
período de pandemia. Ora, acordos trabalhistas são, por definição do artigo
831, parágrafo único, da CLT, decisões irrecorríveis. São, portanto, sentença
definitiva, que deve ser cumprida. Essa regra da MP atinge, então, diretamente,
o conceito de coisa julgada². A coisa julgada tem força de lei (art. 503 do
CPC), devendo ser respeitada, especialmente quando produzida mediante
composição da vontade das partes.
O valor pago em razão do acordo pertence ao
empregado. Logo, ao autorizar a suspensão do pagamento, a MP está autorizando a
retenção de salário, ferindo a literalidade do artigo 7o, X (proteção do
salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa) da
Constituição. Está estimulando, pois, uma atitude criminosa. Isso sem falar que
em um período de pandemia, o valor que foi ilicitamente subtraído do empregado
e que está sendo devolvido através do acordo é muitas vezes sua única fonte de
subsistência física. Autorizar a suspensão dos pagamentos implica colocar em
risco de vida o trabalhador e seus familiares, além de prejudicar suas
possibilidades de consumo e, por consequência, a economia nacional.
Um festival de imoralidade jurídica que não
pode ser chancelado pelo parlamento brasileiro. Há um senso comum hipócrita
segundo o qual todos devemos dar uma cota de sacrifício em razão da crise.
Estranho é que esse sacrifício vem sendo exigido reiteradamente da classe
trabalhadora, com medidas que não guardam qualquer relação com a crise. Ora,
como é possível compreender que reduzir salário e majorar jornada de quem atua
na saúde pode de algum modo auxiliar no enfrentamento da pandemia? A suspensão
da exigibilidade dos acordos ou a tentativa de supressão de direitos por acordo
individual são ainda mais inexplicáveis da perspectiva de quem tem alguma
ambição em enfrentar a crise sanitária.
E, curiosamente, sacrifício nenhum vem sendo
exigido do governo, dos parlamentares ou das instituições financeiras,
sanguessugas da economia nacional que estão se locupletando com o endividamento
das famílias brasileiras.
As regras contidas no projeto de conversão da
MP 927 apenas aprofundam o desmanche iniciado em 2017, com a chamada “reforma”
trabalhista. Da perspectiva econômica implicam a retirada de valores de
circulação e, portanto, um prejuízo concreto e real aos pequenos e médios
empregadores, pela redução de consumo que já estão promovendo. Pessoas com
salário reduzido e jornadas de mais de 12h não tem tempo nem dinheiro para
consumir. Essa obviedade parece passar despercebida por nossos parlamentares,
que em lugar de honrarem os votos que receberam para concretizar direitos que
garantam sobrevivência física durante esse período de flagelo, atuam em nome de
interesses antirrepublicanos, contribuindo de forma decisiva para o agravamento
da desigualdade e da miséria em nosso país.
Há, ainda, a chance de o Senado da República
barrar esse saque à classe trabalhadora. Tendo em vista o que recentemente
ocorreu com a MP 936, não há dúvida de que isso dependerá de uma mobilização
social que desvele a perversidade desse movimento organizado de destruição do
Estado Social, posto em marcha justamente por quem tem o dever de cuidado e
amparo.
Notas
² Art. 502 do CPC. Denomina-se coisa julgada
material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não
mais sujeita a recurso.
*Valdete
Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e juíza do trabalho
no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.
Fonte: Democracia
e Mundo do Trabalho
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