Informativo
MANIFESTO INTERNACIONAL DEFENDE MUDANÇAS PROFUNDAS NA RELAÇÃO ENTRE O TRABALHO E O CAPITAL
Um manifesto assinado por intelectuais de
todo o mundo, de autoria das acadêmicas Julie Battilana (Universidade Harvard,
nos EUA), Dominique Méda (Universidade Paris-Dauphine, na França) e Isabelle
Ferreras (Universidade Católica de Louvain, na Bélgica), e que tem circulado
mundialmente pelos centros universitários e divulgado por vários jornais,
propõe uma reflexão global sobre o trabalho. No Brasil, o texto foi
publicado pela Folha de São Paulo.
CONFIRA
A ÍNTEGRA DO MANIFESTO:
Trabalhadores humanos são muito mais do que
“recursos”. Este é um dos aprendizados centrais da crise atual. Cuidar dos
doentes; entregar comida, medicação e outros serviços essenciais; limpar nosso
lixo; repor as prateleiras e controlar os caixas dos nossos supermercados —as
pessoas que mantiveram a continuidade da vida durante a pandemia de Covid-19
são a prova viva que o trabalho não pode ser reduzido a uma mera mercadoria.
Saúde humana e o cuidado dos mais vulneráveis
não podem ser governados apenas por forças do mercado. Se deixarmos essas
decisões somente para o mercado, nós corremos o risco de exacerbar
desigualdades a ponto de perder a própria vida dos menos favorecidos.
Como evitar esta situação inaceitável?
Envolvendo os empregados nas decisões relacionadas às suas vidas e ao seu
futuro no local de trabalho —democratizando empresas. Desmercantilizando o
trabalho —garantindo o emprego protegido para todos e todas.
No momento em que enfrentamos este monstruoso
risco de um colapso pandêmico e ambiental, fazer tais mudanças estratégicas nos
permite garantir a dignidade de todos e todas cidadãs, organizando a força e o
esforço coletivo necessários para preservar a nossa vida juntos neste planeta.
POR QUE
DEMOCRATIZAR?
Todas as manhãs, homens e mulheres levantam
para servir aqueles entre nós que podem ficar em quarentena. Tais trabalhadores
e trabalhadoras nos protegem vigilantes durante a noite. A dignidade de suas
atividades não precisa de outra explicação além do termo eloquentemente simples
“trabalhador essencial”.
Este termo também revela um fator chave que o
capitalismo sempre buscou tornar invisível com outro termo, “recurso humano”.
Seres humanos não são um recurso entre tantos outros. Sem trabalhadores e
trabalhadoras, não existiria produção, serviços ou sequer empresas.
Todas as manhãs, homens e mulheres em
quarentena acordam em suas casas para cumprir, de longe, as missões das
empresas para as quais trabalham. Eles trabalham noite adentro. Para aqueles
que acreditam que empregados não são confiáveis para exercer suas atividades
sem supervisão, que exigem vigilância e disciplina externa, estes homens e
mulheres estão provando o contrário.
Eles estão demonstrando, dia e noite, que
trabalhadores não são um grupo de interesse qualquer: eles possuem as chaves do
sucesso de seus empregadores. Eles são o núcleo constituinte da empresa, mas,
no entanto, são os mais excluídos da participação das decisões de seus locais
de trabalho —um direito monopolizado pelos investidores de capital.
Para a pergunta de como empresas e como a
sociedade em geral pode reconhecer as contribuições de seus empregados em
tempos de crise, democracia é a resposta. Certamente, devemos eliminar o enorme
abismo de desigualdade de renda e elevar o piso da renda de trabalhadores — mas
isso por si só não é suficiente.
Depois de duas guerras mundiais, a
demonstração da inegável contribuição das mulheres para a sociedade lhes ajudou
a conquistar o seu direito de votar. Da mesma forma, é hora de envolver os
trabalhadores e trabalhadoras.
A representação dos empregados no local de
trabalho existe na Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial, por meio de
instituições denominadas de Conselhos de Trabalho. Contudo, estes órgãos
representativos possuem uma voz fraca, na melhor das hipóteses, na decisão das
empresas, e estão subordinados às escolhas das equipes de gestão executiva
nomeadas pelos acionistas. Eles foram incapazes de parar ou até retardar o
momento implacável da acumulação de capital que serve a si próprio, cada vez
mais poderoso na destruição do nosso meio ambiente.
Estes órgãos representativos devem ter agora
direitos semelhantes a aqueles exercidos por conselhos executivos. Para fazer
isso, poderia ser exigido, por conselhos que representam trabalhadores e
acionistas, que gestores de empresas (ou seja, alta gerência) somente
obtivessem a aprovação de decisões com dupla votação majoritária.
Na Alemanha, nos Países Baixos e
Escandinávia, diferentes formas de co-gestão inseridas progressivamente após a
Segunda Guerra Mundial foram um passo crucial para dar voz aos trabalhadores
—mas tais mecanismos são ainda insuficientes para criar uma cidadania efetiva
nas empresas. Mesmo nos Estados Unidos, onde a organização coletiva dos
trabalhadores e os direitos sindicais foram consideravelmente suprimidos,
existe, neste momento, uma crescente reivindicação para conceder aos
trabalhadores o direito de eleger representantes com supermaioria dentro dos
conselhos.
Questões como a escolha de um presidente, a
definição das principais estratégias e a distribuição de lucros são importantes
demais para serem deixadas apenas aos acionistas. Um investimento pessoal de
trabalho; isto é, da mente e do corpo, da saúde —da própria vida— deve vir com
o direito coletivo de validar ou vetar essas decisões.
POR QUE
DESMERCANTILIZAR?
Esta crise também evidencia como as relações
de trabalho não devem ser tratadas como mercadorias, e como mecanismos de
mercado não podem ser os únicos responsáveis pelas decisões que impactam nossas
comunidades de forma mais profunda.
Há tempos, a gestão de empregos e insumos na
área da saúde têm sido conduzida sob a ótica do lucro; hoje, diante da
pandemia, é revelada a extensão da cegueira a que fomos submetidos diante de
tais princípios.
É extremamente importante que certas demandas
estratégicas e coletivas sejam simplesmente removidas de tal perspectiva. A
crescente contagem de corpos ao redor do mundo é um lembrete sinistro de que
certas coisas nunca devem ser tratadas como mercadorias.
Aqueles que continuam discordando acabam por
condenar todos com sua ideologia inconsequente. Rentabilidade é uma métrica
inaceitável de sucesso quando consideramos nossa saúde e nossas vidas neste
planeta.
A desmercantilização do trabalho propõe que
determinados setores sejam protegidos das ditas “leis do livre mercado”, também
garantindo que todas as pessoas tenham acesso a trabalho e às condições dignas
atreladas a ele. Uma alternativa para tanto seria a criação de uma Garantia de
Emprego.
O Artigo 23 da Declaração Universal dos
Direitos Humanos preconiza que todos os seres humanos têm o direito ao
trabalho. A Garantia de Emprego não só ofereceria a cada cidadão a oportunidade
de um trabalho digno, mas também seria um vetor de propagação de mudanças
coletivas em questões sociais e ambientais tão urgentes.
Ao garantir empregos, governos teriam a
oportunidade de, através de ações com comunidades locais, de promover a
dignificação das relações de trabalho enquanto contribuem para o intenso
esforço de combate ao colapso ambiental.
Por todo o globo, à medida que as taxas de
desemprego crescem vertiginosamente, programas de proteção ao emprego oferecem
a chance de garantir estabilidade social, econômica e ambiental às nossas
sociedades democráticas. A União Europeia tem o dever de incluir tal projeto em
seu Green Deal.
O Banco Central Europeu deve revisar sua
missão para que possa financiar tal programa, o que se faz necessário para sua
sobrevivência, uma vez que isso legitimaria sua função junto à vida de cada
cidadão da União Europeia. Uma solução contra o ciclo explosivo de desemprego
que se anuncia, esse programa poderia ser uma contribuição chave para a
prosperidade da UE.
REMEDIAÇÃO
AMBIENTAL
Não podemos reagir agora com a mesma
inocência de 2008, quando respondemos à crise econômica com um plano de resgate
incondicional que inchou a dívida pública sem exigir nada em retorno. Se nossos
governos intervirem para salvar negócios na crise atual, então negócios também
devem agir estrategicamente, buscando atingir condições básicas de democracia.
Em nome das sociedades democráticas a que
servem, e das quais são constituídos, em nome da responsabilidade de garantir
nossa sobrevivência neste planeta, nossos governos devem garantir que os
auxílios a empresas estejam atrelados a determinadas mudanças de conduta.
Além de se sujeitar a rigorosos critérios
ambientais, empresas deverão cumprir condições específicas de governança
interna democrática. Para que a transição de um modelo apoiado em degradação
para outro baseado em recuperação e regeneração ambiental seja bem sucedida, esta
deverá ser conduzida por empresas com uma governança fortemente democrática,
nas quais as vozes dos que investem sua força de trabalho tenham o mesmo
impacto em decisões estratégicas do que aqueles que investem o seu capital
econômico.
Já esgotamos o nosso tempo para perceber o
que acontece quando trabalho, o planeta e ganhos de capital tentam se
equilibrar dentro do sistema vigente: trabalho e o meio ambiente sempre perdem.
Graças à pesquisa realizada no Departamento de Engenharia da Universidade de Cambridge
(Cullen, Allwood, and Borgstein, Envir. Sci. & Tech. 2011 45, 1711–1718),
sabemos que “mudanças possíveis em processos produtivos” poderiam reduzir o
consumo global de energia em 73%.
Porém, tais mudanças requerem intensificação
da força de trabalho e decisões que podem ser mais onerosas a curto prazo.
Enquanto empresas estiverem focadas em apenas maximizar lucros para seus
investidores, num mundo onde energia é barata, o que justifica tais mudanças? E
apesar dos desafios de tais transições, negócios com consciência social e
gestão cooperativa —com metas híbridas que combinam ganhos financeiros, sociais
e ambientais, e o desenvolvimento de governanças internas democráticas —se
mostram como alternativas viáveis com o potencial de atingir tais impactos positivos.
Não podemos continuar nos enganando: se
deixados a sua própria sorte, a maior parte dos investidores de capital
continuarão não se importando com a dignidade daqueles e daquelas que investem
sua força de trabalho; tampouco irão liderar a luta contra a catástrofe
ambiental. Uma outra via é possível. Democratizar empresas; desmercantilizar
relações de trabalho; e focar, juntos, em regenerar o planeta.’
Fonte: Folha de São Paulo
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